A organização e valores que conformam o Estado Democrático de Direito não se dissociam da observância rigorosa do princípio da igualdade. Para Dallari1 (1972) a concepção verídica do princípio da igualdade implica em igualdade de possibilidades sem nos basearmos em critérios artificiais. Repelem o princípio da igualdade quaisquer privilégios que insiram determinados indivíduos a princípio em condições favoráveis (econômicas, intelectuais, etc) em dissonância com aquelas apresentadas por diversos integrantes do corpo social. Então o princípio da igualdade deve colimar a efetivação da igualdade substancial de modo não abstrato.
A luta contra o arbítrio, o anseio por liberdade, produziu os Direitos Humanos para Telles Junior (2016),2 compondo o ordenamento jurídico como norma o princípio da igualdade insculpido no artigo 5º caput e inciso I da Constituição Federal ao elencar que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, inclusive homens e mulheres no que tange a direitos e obrigações.
Já para Lenza3 a busca pela igualdade substancial é muitas vezes idealista e foi eternizada na denominada Oração dos Moços, de Rui Barbosa, embasado em Aristóteles ao apregoar que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Com a Constituição Federal de 1988, operando-se o fenômeno da constitucionalização do direito civil, assistimos à mudança de paradigma quanto aos bens jurídicos a serem prioritariamente protegidos que passaram a se identificar justamente com os direitos humanos, superando-se em termos normativos a ótica patrimonial, individualista e liberal de outrora.
Isso significa dizer, conforme já figura no protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021 do CNJ, cuja observância é cogente pelo Poder Judiciário4 de modo consentâneo com os objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 e 16 da Agenda 2030 da ONU, que os julgamentos não podem incorrer em repetição de estereótipos e perpetuação de tratamentos distintos.5 Devem, efetivamente, ter em vista a realidade social, suas discrepâncias e diferença de forças e condições para exercício de atos, sob condições equânimes. Por conseguinte, ainda que presentes diversificados entraves, o alcance da igualdade substancial deve ser o objetivo precípuo não somente do julgador, mas de toda a sociedade.
Endereçando nosso foco de atenção às diferenças de poder entre gêneros advindas das peculiaridades do patriarcado, urge que meditemos acerca da inserção da mulher no mercado de trabalho e se a mesma vem se concretizando com acatamento do princípio da igualdade substancial.
E a resposta a tal indagação é bastante clara: a negativa se impõe de modo veemente no que pertine ao derradeiro aspecto.
Preliminarmente, urge que analisemos a composição da população da República Federativa do Brasil.
Consoante dados do PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2022 do IBGE6 a população brasileira é composta por 48,9% de homens e 51,1% de mulheres. Idêntica fonte de dados noticiou, para o período do segundo trimestre de 2022, que a população negra corresponde a 55,8% dos brasileiros,7 compreendidos nessa parcela da população indivíduos que se autodeclaram pretos e pardos.8 Então a conclusão que se impõe é a maioria da população é do gênero feminino e preta.
Ocorre que ao verificarmos dados estatísticos sobre a majoritária camada que compõe a população nacional detectamos que justamente são elas, mulheres pretas, as que mais estão alheias ao mercado de trabalho e quando se encontram ativas, percebem as remunerações mais modestas. Constatou-se que a mulher negra auferiu 46,3% do rendimento havido pelo homem branco, o trabalhador melhor remunerado.9
De ver-se que as famílias monoparentais com filhos e chefias femininas representaram em 2022 14,7% dos arranjos familiares, com expressividade mais intensa do que as masculinas.10 A patente vulnerabilidade de tais organizações familiares, que não obstante previstas pela Constituição Federal não mereceram regramento do ordenamento jurídico para superação de suas vulnerabilidades, decorre em explícita violação de direitos humanos.11 Tais mulheres apresentam óbices concretos à formação profissional e disponibilidade de tempo diante da necessidade de se dedicarem aos cuidados exigidos pela prole incapaz o que pugna, de modo emergencial, a implementação de políticas públicas para que o contexto possa ser suplantado. A inobservância do princípio da igualdade substancial, a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana e a vigência do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021 do CNJ consubstanciam bases normativas sólidas para apreciação de demandas em que declinados interesses jurídicos de tais mulheres.
O que se explana por ora nada mais é do que a realidade consolidada em nosso país. Desigualdade, diferenças no mercado de trabalho em virtude de marcadores de gênero, cor, camada social peculiares às mulheres.
A situação não é diversa no âmbito das esferas pública e privada. Há percentual desproporcional e sob extensão acanhada das mulheres que ocupam posições de poder ou chefia nas instituições e pessoas jurídicas de modo geral.
Na seara legislativa na Câmara existem 77 deputadas entre 513 parlamentares; no Senado, 13 entre 81;12 no Executivo, nos Ministérios, a participação é ainda menor (número não superior a onze).13 No STF temos duas mulheres, com recente indicação pelo Presidente da República de novo Ministro, do gênero masculino e branco, para assunção da vaga criada pela aposentadoria do Ministro Ricardo Levandowski14 ao passo que no STJ existem seis ministras15 num universo de 33.
Justamente em virtude de tal contexto a Coalização Nacional de Mulheres endereçou solicitação ao Presidente da República com o escopo de se lograr êxito na indicação da primeira mulher negra para compor o STF,16 iminente a abertura de vaga pela aposentadoria compulsória da Ministra Rosa Weber.
Atente-se para a circunstância de que o Poder Judiciário é composto por uma maioria de magistrados do gênero masculino e serventuárias do gênero feminino.17
O CNJ está se mobilizando, através de programa de equidade racial, estudando mecanismos para promoção de mulheres e negros com alcance de cargos de cúpula, inclusive, por intermédio de cotas.18
Também na iniciativa privada vem se cogitando a propósito do sistema de cotas e instituição de plano de carreira para melhor inserção das mulheres no mercado de trabalho. Se a previsão consoante dados do Global Gender Gap Report 2021 do Fórum Econômico Mundial é que a paridade de gênero no mercado de trabalho venha a ocorrer em 136 anos, estima-se que o período será dobrado no que tange à isonomia salarial.19 Questão que não pode ser relegada a segundo plano é a dificuldade de cumprimento de mais de uma jornada de trabalho pelas mulheres como consequência da feminização do cuidado, com sugestão a nosso ver pertinente de que o redimensionamento de licenças e organização de cursos para mulheres (e diversos gêneros) em empresas possam ser benéficos no processo de equilíbrio e conscientização.20 Também há propostas de ampliação de licença para ambos os pais após o nascimento dos filhos,21 sendo certo que na atualidade as mulheres ostentam licença de 120 dias em virtude do nascimento do filho em descompasso com cinco dias corridos para os homens. Aqui as propostas igualmente nos parecem salutares com a ressalva que a isonomia de licença paternidade deve vir acompanhada de alteração de postura dos genitores no sentido de divisão das atribuições com os filhos menores e serviços domésticos, efetivamente. Devemos atentar ao índice elevado de demissões de mulheres após o término de licenças maternidade. Além de educação (os sugeridos cursos nas empresas para internalização da relevância da temática e imprescindibilidade de seu enfrentamento) tem-se como oportuno que tais licenças não sejam prorrogadas continuamente, ainda que com o uso de folgas remuneradas (férias, etc), sem a prévia equalização da carga de trabalho junto às empresas e instituições. O franco e prévio diálogo e programação entre funcionárias, funcionários, gestores e órgãos diretivos deve existir e primar pelo respeito e responsabilidade com plenitude e reciprocidade a fim de que não haja prejuízo às atividades laborativas com licenças não acordadas, ausência de funcionários para substituição após o decurso da licença legal, etc (ressalvadas, por evidência, hipóteses de eventos imprevisíveis ou emergenciais). Outro mecanismo que pode se mostrar benfazejo é o trabalho híbrido com realização de home office, implementado a partir da pandemia de covid-19 e que por vezes atende a necessidade de supervisionamento da prole pelas mães sem prejuízo do desenvolvimento de atividade laborativa.
Na esfera pública as recomendações de educação política desde tenra idade para superação dos preconceitos estruturais, fiscalização mais efetiva e célere na punição dos partidos que descumprirem a legislação das cotas de gênero, combate da violência política contra mulheres, fortalecimento de lideranças políticas femininas por meio de alianças com organizações, instituições e pessoas comprometidas com igualdade de gênero e marketing político são condutas igualmente desejáveis.22
A falta de representatividade feminina, especialmente em cargos com poder decisório nas estruturas empresariais e instituições, muitas vezes desestimula as mulheres a continuarem integrando os quadros em questão. Até mesmo como reflexo da cultura patriarcal tais mulheres costumam ser mais exigentes consigo mesmas em regra, apenas concorrendo a vagas de emprego quando preenchem a totalidade de requisitos.23
Sob outro vértice, especialistas constataram a ausência de ambiente de inclusão de líderes do sexo feminino24 nas empresas por intermédio de pesquisa da McKinsey nos EUA, notando-se que as mulheres têm suas decisões mais questionadas do que aquelas exaradas por profissionais do gênero masculino com alto índice de verificação da circunstância de que, ao menos uma vez, já foram confundidas com funcionárias de nível hierárquico inferior, com episódios não pontuais de assédio ou discriminação. Apurou-se pela pesquisa igualmente que mulheres líderes querem uma cultura de trabalho melhor, possuindo probabilidade significativamente mais ampla do que os homens de deixarem seus empregos ou porque desejam maior flexibilidade ou porque desejam trabalhar em empresa mais comprometida com bem-estar, diversidade, equidade e inclusão dos funcionários.
No contexto supra delineado foi promulgada a Lei 14.611/202325 que prevê como medidas para garantia de igualdade salarial o estabelecimento de mecanismos de transparência salarial, incremento de fiscalização, criação de canais específicos para denúncias de casos de discriminação salarial, promoção de programas de inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, lideranças e empregados sobre equidade salarial entre homens e mulheres no mercado de trabalho com aferição de resultados, fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.
Do cotejo entre a materialidade fática e a ótica de implementação do princípio constitucional da igualdade substancial tem-se que a edição do elogioso diploma legal sem a adoção de medidas concretas que alterem o abismo entre a tênue ocupação de mulheres no mercado de trabalho sob igualdade de condições e salariais em cargos de direção/poder decisório dentre os demais e a assunção de cargos e funções laborativas por pessoas do gênero masculino (em geral, brancas) é de pouca eficácia.
Acrescentamos mais um fator de suma importância. É indispensável que as mulheres possam usufruir de acesso a informes e conhecimentos sobre cultura de gênero para que, no ambiente de trabalho, possam consumar suas atividades profissionais sob entrosamento e cooperação entre si. A cultura patriarcal é absorvida não raras vezes pelas próprias mulheres que se tornam pouco acessíveis ou até mesmo refratárias a outras profissionais do mesmo gênero, especialmente em funções hierarquicamente superiores. Dá-se a desunião, a competitividade irracional e deletéria ao desenvolvimento do labor. Embora todos possamos de modo benéfico constatar a mudança cultural a propósito em diversas dimensões, em empresas e espaços públicos, o enraizamento das concepções de que a mulher ostentaria menor valia quando comparada ao individuo do gênero masculino ainda é profundo e compartilhado por todos os extratos sociais.
Com efeito, muito temos a evoluir para que seja implementado rotineiramente e sem alardes de excepcionalidade o princípio da igualdade substancial nas relações de trabalho com tratamento isonômico entre homens e mulheres. Certamente a mudança nos espaços públicos de poder, inclusive representativos, consubstancia passo inicial bastante desejável e deveras factível, suplantando-se, inclusive, a dissonância entre o gênero e aspecto racial da população majoritária do país com o perfil de integração de trabalhadores, concretamente, no mercado de trabalho. Somente assim poderemos progredir em todas as instâncias.
Referências
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1. Dallari, Dalmo de Abreu, “Elementos da Teoria Geral do Estado”, São Paulo, 1972, Editora Saraiva, página 264;
2. Telles Junior, Gofredo, “Estudos”, São Paulo, 2ª edição, 2016, Editora Saraiva, página 151;
3. Lenza, Pedro, “Direito Constitucional Esquematizado”, São Paulo, 21ª edição, 2017, Editora Saraiva Jur, pag 1123;
4. Resolução 492 de março de 2023;
5. www.stj.jus.br, “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero passa a ser obrigatório no Judiciário”, acessado em 28/07/2023;
6. www.educa.ibge.gov.br , “Conheça o Brasil-População” acessado e 31/07/2023;
7. www.dieese.org.br, acessado em 31/07/2023;
8. www.educa.ibge.gov.br, “Conheça o Brasil-População Cor ou Raça”, acessado em 31/07/2023;
9. www.g1.globo.com, Trabalho e Carreira, Cavallini , Marta, 19/11/2022, acessado em 31/07/2023;
10. www.dieese.org.br, “As dificuldades das mulheres chefes de família no mercado de trabalho” acessado em 31/07/2023;
11. Lobo, Fabíola Albuquerque, “O Direito Civil Constitucional como Mecanismo de Superação na Desigualdade de Gênero”;
12. www.estadao.com.br, “Por mais mulheres na vida pública”, 28/02/2022, acessado em 31/07/2023;
13. www.gov.br, “Ministros”, acessado em 31/07/2023;
14. www.12.senado.leg.br, matéria veiculada em 01/06/2023 acessada em 31/07/2023
15. www.stj.jus.br, “Ministras em Atividade”, acessado em 31/07/2023;
16. www.estadao.com.br, 25/07/2023, acessado em 31/07/2023;
17. www.cnj.jus.br, “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”, acessado em 31/07/2023;
18. www1.folha.uol.com.br, “Judiciário se mobiliza por equidade racial, mira mulheres negras e estuda cotas”, acessado em 31/07/2023;
19. www1.folha.uol.com.br, “Empresas devem aliar cotas femininas a plano de carreira”, consoante Ana Minuto, 13 de março de 2022, acessado em 31/07/2023;
20. www1.folha.uol.com.br, “Empresas devem aliar cotas femininas a plano de carreira”, 13 de março de 2022, Margarida Oliveira, economista e pesquisadora da UFRJ, acessado em 31/03/2023;
21. www1.folha.uol.com.br, “Ter ais filhos tira 40% das mulheres do mercado e apenas 0,6%dos homens”, 13 de maio de 2023, Vieceli, Leonardo e Teixeira, Pedro S., proposta de Ely José de Mattos , pesquisador PUCRS DataSocial;
22. Dutra, Maristela, “A importância da participação da mulher na política e desafios desta inserção em face da violência de gênero no Brasil”, in “Mulheres, um Grito de Socorro”, 2023, São Paulo, Editora Leader, pag 182/183;
23. www1.folha.uol.com.br, “Mulheres enfrentam baixa diversidade e autocobrança em processos seletivos”, 8 de março de 2022, Lobato, Isabela, Pereira, Vitoria;
24. Jornal o Estado de São Paulo, 23 de julho de 2023, B2, Economia e Negócios, Dyniewicz Luciana, Mercado de Trabalho e Desigualdade de Gênero;
25. www.planalto.gov.br, acessado em 31/07/2023;