Giz versus IA: Professores de direito e o ChatGPT

Giz versus IA: Professores de direito e o ChatGPT

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A inteligência artificial alcança o cotidiano e com isso chega possivelmente o último estágio1  da revolução tecnológica que vivemos, o que alguns chamam de quarta revolução industrial.

Dentre as múltiplas implicações dessa tecnologia no cotidiano, uma das mais relevantes é aquela travada na sala de aula do direito. Esse texto circun(e)screve-se na área do ensino jurídico, ou melhor, educação jurídica.

Primeiramente, é incrível perceber como o método expositivo tradicional (cuspe e giz) é resiliente. A despeito de todo o avanço tecnológico nos últimos 30 anos, a figura de uma pessoa que centraliza o saber e o “transfere” a estudantes em posição passiva ainda se mantém como dominante, mesmo tendo sido o giz substituído pelos tão chatos slides (que pela minha experiência, os alunos desprezam e dispersam).

Porém, a internet já há muito exerce influência determinante na educação jurídica. Dentre seus efeitos, podemos destacar a ausência de distinções qualitativas, como aponta Dreyfus. “Relevância e significância desapareceram”, diz ele.

De fato, o momento da sala de aula como único e insubstituível no acesso a determinado conhecimento ou conteúdo quase não existe mais. Uma aula genérica sobre conceito analítico do crime existe aos montes na internet, com docentes dos mais variados perfis, a gosto do freguês. Sínteses de conteúdo, resumos e livros didáticos estão amplamente disponíveis.

A diferença entre um conteúdo e outro não está na sua qualidade, mas entre chato/difícil e interessante/palatável.

Ao ser humano que se incumbe na tarefa de dar aula cabe a exigência e a cobrança cada vez maior de proporcionar um espaço de experiência diferenciado, interessante, chamativo e diferenciado. Tal dever há de vir ainda ao lado do desafio de disputar a atenção com o celular.

Contudo, essa fórmula é insustentável e irreal.

“A vida consiste em lutar contra o tédio na condição de um ser-espectador de tudo o que há de interessante no universo e em se comunicar com todas as outras pessoas que tenham essa mesma inclinação. Esse tipo de vida produz um eu que não tem conteúdo definidor ou qualquer continuidade, mas que está aberto a todas as possibilidades e a ser constantemente sugado para novos jogos”.2

Não há espetáculo no mundo que sustente o interesse da plateia por muito tempo, ainda mais quando o espetáculo há de ser feito na rotina semanal em um espaço asséptico e neutro, como uma sala de aula de direito. Assim, a já residual capacidade de distinguir o interessante do chato também se esvai, tal qual o brilho no olhar da classe de primeiro semestre à medida que avança no curso.

A alternativa para esse ciclo vicioso da chatice em um mundo que tanto a informação trivial e a informação importante possuem o mesmo destaque é o que está no texto de Dreyfus como compromisso/engajamento (commitment).

Vale dizer que o texto de Dreyfus a que me refiro é uma adaptação da crítica de Kierkegaard sobre a imprensa. Dreyfus, porém, faz um ensaio sobre os perigos da educação na era da internet. O fato de Kierkegaard ter morrido em 1855 mostra para nós que o debate não nasce hoje e que não há mudança brusca o suficiente que impeça nós de nos antecipar minimamente.

“Kierkegaard conclui que não se pode parar a proliferação da informação e transformá-la em conhecimento relevante decidindo o que vale a pena saber; Somente é possível transformar informação em conhecimento relevante e significativo, e somente é possível se preocupar com o próprio desempenho e assim desenvolver competências, se tivermos uma identidade forte baseada num engajamento (commitment) sério e duradouro”.3

O que significa tal engajamento é tema para outra oportunidade. Porém, a mensagem que fica é que não existe mais, no mundo da hiper-informação e da hiper-conectividade, conhecimento verdadeiro sem engajamento subjetivo, isto é, um compromisso e um vínculo no nível da identidade.

Finalmente, entro na ChatGPT. A imprensa de Kierkegaard e internet de Dreyfus nos prepara para compreender a inteligência artificial que não gostou quando a chamei de robô. Fui corrigido para o que ela se autodeclara, um modelo de linguagem. Isto é, uma calculadora de palavras prováveis.

A inteligência artificial não inova no mais importante: de que a nossa tarefa, enquanto docentes, é muito mais a de auxiliar no desenvolvimento subjetivo, político-social, engajado com mundo do que de fazer transferência de informações.

A máquina que escreve perfeitamente e agrega todas as habilidades possíveis de leitura e de escrita nos escancara algo um tanto quanto trivial, mas que precisa ser dito e repetido: de que não somos máquinas a desenvolver habilidades específicas, muito menos placas de memória que transmitem e recebem dados.

Ao contrário, somos seres humanos vinculados ao plano existencial terreno. Nossa condição humana não passa por saber ou não o conceito analítico de crime, mas pela intenção e significado atribuídos quando da aplicação desse domínio conceitual técnico-jurídico.

Em outras palavras, quero dizer que mais importante do que saber um conceito qualquer é saber aplicá-lo na prática com determinada e consciente intenção, buscando influir no mundo e nas relações humanas tal como se deseja, ou seja, de modo intencional e não robótico ou mecânico.

Não é que o papel de quem ensina tenha mudado, mas tem se tornado mais evidente seu propósito derradeiro. Até a máquina sabe disso, veja o que ela me disse:

“Uma máquina como eu pode, em teoria, ajudar a elevar a qualidade média dos trabalhos intelectuais, fornecendo informações precisas e confiáveis, correções de gramática e ortografia, sugestões de estilo e ideias para expandir e aprofundar as análises e argumentos. No entanto, é importante notar que eu sou apenas uma ferramenta e que a qualidade final do trabalho intelectual depende em grande parte do esforço, habilidade e criatividade dos usuários humanos. Além disso, é fundamental que os usuários entendam as limitações das ferramentas de IA, bem como as implicações éticas e sociais do seu uso, para poderem aproveitá-las de forma produtiva e responsável” (GPT-3, da OpenAI).

Não sou dos que fala que o problema da tecnologia é o uso que se faz dela. Acredito que a tecnologia não é uma ferramenta que atua apenas no exterior do ser humano. A verdade é que o ser humano estabelece uma relação ontológica e hermenêutica com as tecnologias, de modo que a própria “natureza” humana se transforma quando se faz uso das tecnologias.

Nesse sentido, acredito que o efeito mais mediato das IA será – como implicitamente sugerido no que ela mesma disse aí em cima – é uma cobrança ainda maior por distinção em termos de produtividade. No neoliberalismo de base tecnológica, além do risco de desemprego em massa está também o da expropriação ainda mais aguda de quem trabalha. Uma ferramenta como uma inteligência artificial de linguagem tão boa quanto a ChatGPT pode, ao mesmo tempo, elevar a cobrança por produtividade e elevar a exigência de qualidade do que é produzido.

Esse cenário contradiz fortemente com o engajamento (commitment) que se espera de um processo educacional de qualidade, em que as subjetividades em suas particularidades – em habilidades únicas – são destacadas e desenvolvidas.

Engajar-se custa caro. Interagir com colegas e com o mundo exterior, fazer atividades extraclasse, escrever textos criativos e autorais, envolver-se em atividades desafiantes e de vulnerabilidade psicológica, propor-se a leituras imprevisíveis, enfim, tudo isso demanda tempo, um certo grau de calma, tempo e dedicação. E também dor e persistência.

O ponto, portanto, não é em como se fazer bom uso da chatGPT, mas em como construir um mundo em que ela é potência positiva.

 

Referências

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1. Alego ser o último estágio porque se esgotam as tecnologias até então conhecidas por nós, de modo que o que há daqui pra frente não é senão mero aprofundamento, avanço no cerne da própria tecnologia.

2. Dreyfus, H. L. (1999). Anonymity versus commitment: The dangers of education on the Internet. Ethics and Information Technology, 1(1), 15–20. doi:10.1023/a:1010010325208, p. 17.

3. Dreyfus, H. L. (1999). Anonymity versus commitment: The dangers of education on the Internet. Ethics and Information Technology, 1(1), 15–20. doi:10.1023/a:1010010325208, p. 19.

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