Na noite de domingo de carnaval, dia 19/02/2023, e na madrugada seguinte, o litoral norte de São Paulo foi atingido por uma chuva torrencial que até o momento já deixou mais de 45 vítimas fatais, além de inúmeros desaparecidos e um rastro de destruição em vários municípios da região. Como se não bastasse a tragédia ambiental e humanitária, a região passou a ser assolada também por uma tragédia ética, moral e criminosa.
Moradores da região denunciaram que comerciantes estariam se aproveitando da situação e vendendo produtos por preços exorbitantes. Relatos e denuncias afirmam que o preço do litro de água chegou a ser vendido por R$ 93,00. O repórter Walace Lara da TV Globo, chegou a se emocionar ao vivo com a situação. Enquanto várias pessoas se mobilizavam para ajudar os atingidos, alguns comerciantes se aproveitavam da situação para obterem um lucro indevido.
O direito sempre trabalhou com elementos que violam a boa-fé e a equidade dos contratos e relações jurídicas. Podemos citar, por exemplo, o art. 422 do Código Civil ao estipular que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Também existe previsão nessa mesma legislação da possibilidade de anulação dos contratos caso tenha ocorrido algum vícios do consentimento como, por exemplo, a lesão e o estado de perigo. O art. 156 da legislação civil define como estado de perigo a situação na qual alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. O instituto da lesão ocorre quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Ora, se o próprio Código Civil, que é um código que regulamenta a relação entre particulares, tem previsão de situações na qual uma das partes se beneficia pelo desespero da outra, a legislação consumerista que protege o vulnerável é ainda mais protetora.
Já no primeiro artigo, o Código de Defesa do Consumidor estabelece normas de ordem pública e interesse social. Significa dizer que as regras são indisponíveis, e devem ser principalmente em um momento de calamidade pública como esse. A Política Nacional das Relações de Consumo tem com princípio o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, em situações de plena normalidade, quiçá em situações extremas, assim como a coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, nos termos do art. 4,VI.
São direitos básicos dos consumidores, dentre outros, a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Além disso, é considerado como prática abusiva, exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva, bem como elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços, nos termos do art. 39, V e X.
Ainda assim, são nulas de pleno direito, as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade, art. 51, IV.
Se não bastassem todas essas violações ao Código de Defesa do Consumidor, o art. 36, III, da Lei n. 12.529/11, prevê como infração contra à ordem econômica aumentar arbitrariamente os lucros.
Também é possível enquadrar a conduta desses comerciantes no art. 3º, VI, da Lei n. 1.521/51, como crime contra economia popular que prevê pena de detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa.
Os comerciantes que realizam essa prática também estão sujeitos às penalidades administrativas do Decreto n. 2.181/97, que prevê dentre outras sanções, a suspensão de fornecimento de produtos ou serviços, a suspensão temporária de atividade, a cassação de licença do estabelecimento ou de atividade e a interdição, total ou parcial, de estabelecimento.
Ou seja, por todos os aspectos que se observa a referida conduta, além de imoral, desumana e oportunista, ela se enquadra em vários crimes e violações ao ordenamento jurídico brasileiro.