O Ministério da Segurança Pública baixou em 12 de abril de 2023 a Portaria 351/2023 cujo objetivo é regulamentar conteúdos disponibilizados nas redes sociais, enquanto viola frontalmente as normas que já regulam a matéria, especialmente o Marco Civil da Internet.
Com suposto fundamento na ideia de afastar conteúdo violento ou ilegal das redes sociais, a portaria inova no ordenamento jurídico e cria obrigações aos provedores de aplicação, sem respaldo legal.
O Marco Civil da Internet
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) regulamenta o regime da responsabilidade civil dos provedores de aplicação em razão de conteúdo gerado por terceiros.
O artigo 18 do Marco Civil trouxe ao ordenamento jurídico o conceito que já figurava no decálogo1 do CGI2 sob a rubrica “inimputabilidade da rede”. O conteúdo do princípio da inimputabilidade da rede foi definido como “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores da defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos”3
Na mesma toada de “não mate o mensageiro”, o artigo 18 do Marco Civil dispõe que “O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”. Assim, exceto quando a lei expressamente prever em sentido contrário, como já ocorre com a pornografia de vingança ou violação a direitos autorais, o provedor de aplicações somente está obrigado a remover conteúdo de terceiros, e será responsabilizado se não o fizer, quando houver ordem judicial específica neste sentido (artigo 19 do MCI).
E o regime de responsabilidade civil dos provedores encontra uma lógica muito simples: o regime notice and take down4 , já adotado anteriormente ao MCI pela jurisprudência, transfere a obrigação de avaliar eventuais ilicitudes no conteúdo ao provedor.
Em tese, pode ser sedutora tal saída, no entanto, na prática, não se sustenta. Isso, pois o Brasil não é conhecido por ser um país que presa por segurança jurídica. Assim, cada notificação recebida pelo provedor de aplicação, caso não removido o conteúdo indicado, poderá ensejar uma ação indenizatória e, no final das contas, nenhum provedor de aplicações tem interesse em correr risco de o Judiciário entender aquele conteúdo como ilícito e, assim, condenar ao pagamento constantemente de indenizações. Resultado? Notificado o conteúdo, a remoção de conteúdos, mesmo que em exercício regular da liberdade de expressão, ocorre muito mais frequentemente.
Veja, não me refiro a conteúdo de ódio ou violento, mas apenas de uma crítica abarcada pelo legítimo exercício da liberdade de expressão. Tal conteúdo, caso desagrade alguém e seja objeto de notificação ao provedor, provavelmente será removido.
Se até mesmo com a obrigação de passar pelo crivo do Judiciário, diversos conteúdos legítimos e verdadeiros são diariamente removidos, imagine só se a mera notificação já fosse suficiente para ensejar a responsabilização dos provedores.
Ainda que eu entenda pela correta adoção do regime de responsabilização dos provedores de aplicação pelo legislador quando da edição do Marco Civil da Internet, essa escolha sofre severas críticas, especialmente quanto a sua suposta inconstitucionalidade.
Embora o regramento esteja sujeito a críticas por parte da doutrina, o fato é que a inconstitucionalidade não se presume e até que seja declarada pelo Superior Tribunal Federal, todos devemos cumprir a lei até então vigente.
Em resumo: o regime de responsabilização dos provedores de aplicação previsto no Marco Civil da Internet os obriga a remover o conteúdo apenas mediante ordem judicial, ou diante de outras exceções previstas em lei. A alteração deste regime somente ocorrerá se reconhecida a alegada inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet ou se sobrevier alteração legislativa.
O que o Direito Administrativo nos ensina sobre Portarias
A Portaria é um ato administrativo interno que tem por finalidade ordenar serviços executados pelos agentes públicos. Uma portaria decorre do poder normativo da administração pública, mas não integra o Processo Legislativo.
Por não se confundir com uma lei, mas ter apenas a função de ordenação do serviço público, é vedado que uma portaria baixada crie direitos e obrigações, ou mesmo contrarie uma disposição legal.
Vale lembrar que a atividade legislativa, que pode criar obrigações, é exercida pelo titular de um mandato que foi eleito para tal atividade, enquanto um agente público, tal como o titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública exerce papel que não se confunde com aquele de legislador.
A controvérsia sobre a Portaria 351/2023 do Ministério da Justiça e Segurança Pública
O artigo 1º da Portaria indica o objeto sobre o qual o ato administrativo pretende ordenar a atuação do Poder Público no seguinte sentido:
Art. 1º. Esta Portaria dispõe sobre medidas administrativas a serem adotadas no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais, e dá outras providências.
Observe que a mera leitura do artigo 1º da Portaria não nos permite identificar, desde logo, que o ato administrativo extrapolou seus limites de regular a atuação dos agentes públicos.
A partir do artigo 2º, a Portaria já passa a prever questões controversas, embora ainda defensáveis por estabelecer o entendimento da pasta para temas que contam com certa subjetividade. Assim, o Ministério busca ordenar como será a atuação dos agentes públicos da Secretaria Nacional do Consumidor acerca de conceitos abertos e entendimentos sobre aplicação de princípios, tal como o dever de segurança do fornecedor de serviços.
E a partir do artigo 6º, a Portaria começa a enveredar por um caminho extremamente questionável.
Devo ressaltar, nesse ponto, que a repressão da reiteração dos eventos recentes de violências em escolas e instituições de ensino é louvável. Contudo, não se pode admitir a adoção de meios manifestamente ilegais para a obtenção de resultados desejáveis.
O artigo 6º conta com a seguinte redação:
Art. 6º A SENASP deverá instituir banco de dados de conteúdos ilegais, nos termos desta Portaria, para fins de compartilhamento entre as plataformas de redes sociais, com o objetivo de facilitar a identificação pelos sistemas automatizados.
Vários são os aspectos que podem ser questionáveis, para em homenagem a brevidade, apenas aponto que a portaria eleva a Secretaria Nacional de Segurança Pública ao posto de fiscal da verdade. O termo “conteúdos ilegais” é extremamente amplo e, infelizmente, aparenta não abranger apenas e tão somente promessas ou apologia à violência. Nesse ponto, aproveito para ressaltar a opinião de Marcelo Guedes Nunes sobre questão semelhante5 :
Apesar do compreensível senso de urgência, a condução de um debate regulatório dessa envergadura pautado por eventos casuísticos pode muitas vezes levar agentes públicos bem intencionados a não apenas não resolver o problema – que é complexo e de difícil solução –, mas a piorar uma situação já por si delicada.6
Por fim, mas talvez o mais grave de tudo, está na previsão do artigo 7º da Portaria, que atribui aos provedores de aplicação obrigação sem previsão na lei:
Art. 7º Na ocorrência de circunstâncias extraordinárias que conduzam a uma grave ameaça à segurança pública objetivamente demonstrada, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá determinar a adoção de protocolos de crise, a serem observados pelas plataformas de redes sociais com medidas proporcionais e razoáveis.
Aqui, vale ressaltar, que novamente são empregados termos abertos que concedem poderes desproporcionais ao Poder Executivo Federal, sem qualquer autorização legal para tanto.
Conclusão
Infelizmente a política tende a utilizar valores naturais dos seres humanos, como a repressão à violência contra crianças e adolescentes, para justificar medidas altamente questionáveis não apenas sob a perspectiva legal, como também sob a perspectiva moral.
A utilização de conceitos abertos e expressões subjetivas concede ao Poder Executivo Federal poderes sem previsão legal. E o mais grave é que a Portaria conta com relevante fundamento fático (defesa da criança e adolescente), que praticamente ninguém ousaria criticar, para justifica-la. No entanto, devemos lembrar que os fins não justificam os meios e o seu conteúdo é flagrantemente violador do ordenamento jurídico.
Referências
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1. O Decálogo é uma lista com 10 princípios para a governança e uso da internet.
2. O CGI – Comitê Gestor da Internet é uma instituição multisetorial formada por representantes de dos setores governamental, empresarial, terceiro setor e acadêmicos, cujas atribuições inclui o estabelecimento de diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da internet no Brasil.
3. Disponível em: https://bit.ly/3MQDgBP. Acesso em 13 de abril de 2023.
4. O provedor de aplicação passa a ser responsabilizado pelo conteúdo criado por um usuário caso seja notificado (sem necessidade de ordem judicial) pelo interessado e não proceda a remoção.
5. Apenas para contextualizar, a citação foi extraída de um artigo em que o autor faz análise sobre as audiências públicas realizadas para coleta de subsídios para o julgamento de ações constitucionais que impugnam o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicação e o senso de urgência criado após os eventos violentos ocorridos em Brasília no mês de janeiro do presente ano.
6. A responsabilidade das plataformas e a constitucionalidade do MCI: Impactos no Poder Judiciário e na sociedade. Disponível em: https://bit.ly/3KG7YKV. Acesso em 13/04/2023.