O amor ciseterobrutal: homens aprendem a amar outros homens

O amor ciseterobrutal: homens aprendem a amar outros homens

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Inicialmente, apresentaremos os princípios paradoxais que fundamentam a definição de amor que trazemos neste texto. Trata-se de uma operação política de cumplicidade, admiração e perpetuação de sistemas de poder que fazem com que privilégios e vantagens sociais transitem no interior de grupos hegemônicos. Logo, traçamos um paralelo entre o amor e a solidariedade política. Assim, podemos pensar que esse sentimento de camaradagem, de apoio e fortalecimento intragrupo social é, na verdade, uma fórmula política de perpetuação de zonas inóspitas, de oposições radicais e de hierarquias sociais. Aqui, o amor entre os semelhantes se desdobra em fortalecimento de narrativas, perspectivas de mundo e acessos e, ao mesmo tempo, resvala nas cenas sociais como parâmetro de exclusão de todo corpo marcado à distância dos estatutos de justificação. A norma tem como propósito tecer essa justificação no instante em que dissimula a localização das identidades e que disfarça o caráter tecnopolítico das hierarquias de gênero e de sexualidade, por exemplo.

Para Foucault (2017), a formulação das sexualidades dissidentes responde aos interesses políticos de gerenciamento dos corpos, sobretudo pela profusão intensa dos discursos sobre a sexualidade administrados pelo interesse normativo da vigilância. Ao contrário do que se pensa, o controle das sexualidades lidas como dissidentes não pressupõe o seu ocultamento. A lógica de vigilância reitera e publiciza discursos sobre o que compreende como estranho. A anormalidade emerge de uma tensão imposta pela norma, ou seja, pelo interesse vil de dissimular a sua perversidade marcando o outro. Estamos diante de um constructo, de uma técnica que se modula na insistente fala sobre o outro, de submetê-lo aos dispositivos de regulação que, de forma convergente, dão fundamento ao seu desvio.

A ciseterobrutalidade funciona como um maquinário social, econômico, político, moral e cultural que circunscreve as fronteias da existência nos paradigmas da cisgeneridade e da heterossexualidade. Essas prerrogativas são acionadas nas cenas sociais para justificar processos de brutalidade infringidos contra corpos LGBTQIAPN+, de mulheres e demais presenças políticas que se distanciam dos pressupostos de hegemonia que se sustentam nesse sujeito econômica e geograficamente.

É característica dos pactos políticos — herança moderna e igualmente colonial — circunscrever os espaços de habitação e as zonas marginalizadas, territórios ocupados por corpos alvos, por presenças cindidas da humanidade, em nome da projeção normativa de uma vida. Há, nesse pacto, uma espécie de êxtase, isto é, uma experiência de evasão da humanidade, em nome da promoção generalizada da violência. Se o êxtase corresponde a certa saída de si mesmo, ápice e gozo extremo, no pacto entre os semelhantes ele se manifesta como uma separação da ordem do humano em nome da manipulação da desumanidade. É nesse sentido que admitimos que as masculinidades hegemônicas, conformadas na brancura e na ciseterobrutalidade, experimentam uma realidade pactual e amplamente autofágica. Homens são frequentemente ensinados a admirar, respeitar, ouvir, mirar como norte, e tratar como subjetividade, outros homens — obviamente outras masculinidades que não fujam à curva imposta pela ciseterobrutalidade e anunciadas como dissidentes. É urgente, ética e politicamente, que todos os pactos narcísicos, cúmplices e mantenedores de inacessos, sejam descontinuados. Uma realidade ética só pode existir na quebra dos paradigmas de anulação do outro e na conversão política do ódio em cura, no desprezo em cuidado. É preciso que a violência ciseterobrutal dê lugar a novos arranjos, compromissos e relações de gênero.

 

Referências

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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

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