Comentamos em nosso último artigo a relevância de inovação legislativa concernente à concessão de medida protetiva em especial nas hipóteses de violência psicológica, nas quais até então a dificuldade das vítimas e profissionais do direito representando-as era imensa, inclusive para a singela lavratura de boletins de ocorrência, sob a falsa premissa de que violência contra a mulher somente poder-se-ia caracterizar em casos extremos, com lesões corporais apreensíveis materialmente.
Sob o prisma da violência psicológica não podemos olvidar o estelionato sentimental ou amoroso, lamentavelmente cada vez mais em voga na atualidade.
Nos moldes do artigo 7º , inciso II da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause à vítima dano emocional e diminuição de autoestima ou que lhe prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que provoque prejuízo à saúde psicológica e a autodeterminação. Trata-se de tipo aberto, admitindo múltiplas condutas, portanto, a serem valoradas frente ao caso concreto. O elemento norteador para a detecção da violência psicológica é o dano à saúde psicológica e a autodeterminação da vítima. Trata-se de conduta ilícita, resultante de comportamento abusivo do agressor que por questões culturais é indevidamente normalizado, circunstância que a legislação busca combater.
Mas antes de discutirmos reparação de danos ou repressão no âmbito penal impõe-se a ponderação sobre os meios preventivos de eclosão da violência psicológica. E a reflexão a propósito nos remete à primordial ação educativa e de implementação de políticas públicas quer pelo Estado, quer pela sociedade civil para mudança de mentalidade no corpo social.
Podemos nos indagar, como seria possível a consumação de medidas acautelatórias da violência psicológica em detrimento da mulher/pessoa do gênero feminino se até mesmo as camadas mais privilegiadas da população em termos econômicos e que tem acesso ao conhecimento sequer a admitem? Se a internalização da violência é tamanha que não é nominada por quem a perpetra cotidianamente? A divulgação de informações idôneas à população, conscientização e preparo técnico dos profissionais que atuam na rede de apoio e enfrentamento jurídico da violência doméstica nos parecem conformar o caminho a ser trilhado. É crucial que as pessoas do gênero feminino sejam cientificadas de que não só devem almejar como fazem jus ao tratamento adequado, sem violência ou ameaças, sem abuso ou constrangimentos.
Além da acentuada relevância da cultura patriarcal para a instalação de relações assimétricas de poder entre gêneros com a criação de solo fértil para a eclosão da violência, impõe-se a reflexão sobre os próprios rumos da sociedade pós-moderna onde o individualismo, a instauração de falsos ícones de sucesso sob a forte propulsão do estímulo ao consumo e a deterioração da saúde física e mental como sequela, emergem sob as falsas vestes de liberdade de ação. As redes sociais, o excesso de informação na era do tráfego intenso de dados, os digital influencers externando perfeição, realização profissional, financeira, modernidade, etc, comumente premidos pelos rendimentos e estabilidade propiciados por empresas, findam por isolar o individuo que se recente, no mais das vezes, de humanidade efetiva. Como diz o filósofo coreano Byung-Chul Han a comunicação generalizada e a superinformação ameaçam todas as forças humanas de defesa1 . E é nesse quadro que foi aprovado o projeto de Lei 4.229/2015 2 na Câmara dos Deputados em agosto de 2022, pendente análise pelo Senado. Aludido projeto trouxe à baila a expressão “estelionato sentimental” estabelecendo penas superiores para o crime de estelionato cometido em relações amorosas e contra pessoas idosas e vulneráveis, preconizando punições para aqueles que utilizarem as redes sociais para aplicação do golpe. O relator do projeto observou que o avanço da internet e redes sociais potencializou os casos de estelionato. A conduta peculiar a estelionato sentimental consoante definido no projeto em questão consistiria na indução da vítima, com promessa de constituição de relação afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem, com possibilidade de majoração da pena em se tratando de vítima idosa ou vulnerável ou vultoso o prejuízo da vítima decorrente da prática delituosa.
O que obtemperam os estudiosos do Direito Penal é que usualmente o estelionato amoroso corresponde a conduta atípica criminalmente porque a vantagem a ser obtida deve ser ilícita o que não corresponde ao repasse voluntário de bens disponíveis por partes maiores e capazes como nas práticas conhecidas como sugar babies, sugar daddies, sugar mommies, sugar boys, por incidência do princípio da alteridade3 . Todavia, ressaltam a existência do estelionato de fundo amoroso, ainda sob a legislação vigente, onde o criminoso se utiliza de ferramentas de persuasão amorosa para se aproximar da vítima e então obter vantagem ilícita atual ou futura, corriqueira a mantença do relacionamento em tais ilícitos de modo exclusivamente virtual na prática dos denominados fake lovers como golpes do falso marido, do soldado americano, dentre outros. Com acerto ao nosso ver salientam que o patrimônio é o bem jurídico protegido no delito de estelionato o que não coincide com os casos concretos nos quais há abalo à dignidade sexual e integridade psíquica da vítima, usualmente. A violência psicológica cujo delito está previsto no artigo 147-B do Código Penal em regra restará absorvida pelo delito de penalidade mais expressiva, patente a natureza subsidiária do primeiro crime (violência psicológica). Vislumbram maior propriedade do tipo do artigo 215 do Código Penal para punição do estelionato amoroso ou mesmo a configuração do delito de extorsão (artigo 158 do Código Penal) como em casos de encaminhamento pelas vítimas de nudes para fake lovers que findam por perpetrar extorsões (sextorsão), ameaçando as vítimas de exposição pública das fotografias em caso de não pagamento de quantias em dinheiro, no mais das vezes.
Sem descurar da relevância do Direito Penal inclusive como meio de desestímulo a reiteração delitiva pela aplicação da reprimenda ao ilícito, por parte do Poder Judiciário, não pairam quaisquer dúvidas sobre a existência do estelionato sentimental enquanto violência psicológica, leia-se, ilícito a ensejar danos diversificados à vítima A reparação de danos morais e materiais é de rigor e a invocação ao princípio da boa-fé objetiva e vedação ao enriquecimento sem causa, em paridade de relevância normativa com os ditames da Lei Maria da Penha deve se concretizar sem entraves, muito menos preconceitos. É cediça a circunstância de que inúmeras vítimas de delitos similares elegem o silêncio e saboreiam seus prejuízos psicológicos e materiais amargamente à revelia do conhecimento de terceiros justamente com receio de acionarem órgãos públicos e serem ridicularizadas ou menosprezadas, quiçá culpabilizadas privativamente pelos infortúnios, em atos peculiares a violência institucional que cabe a todos os operadores do direito refutar e combater.
Referências
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1. Han, Byung-Chul, Sociedade do Cansaço, Petrópolis, Editora Vozes, 2019, Pág 12;
2. Disponível em: site. Acesso em: 19/06/2023;
3. Costa, Adriano Sousa, Lopes, Aline, Moretzsohn, Fernanda, Consultor Jurídico, 04 de outubro de 2022, pág 4;