Orgulho e memória: o protagonismo trans, na luta pelos direitos LGBTI+

Orgulho e memória: o protagonismo trans, na luta pelos direitos LGBTI+

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O universo que envolve pessoas homossexuais, bissexuais, assexuadas, intersexuais, pansexuais, transgêneras (LGBTI+), e outras associadas a diversas definições que surgem com o decorrer do tempo e em determinadas localidades, possui um estigma em comum, em razão de afrontarem a lógica binária-patriarcal-heteronormativa que fundamenta as relações de poder que circundam as partes componentes de uma dada sociedade.

Tais relações de poder são perfeitamente delineadas por Michel Foucault, quando este discorre acerca do biopoder, em especial, em sua obra “Microfísica do poder”, ao salientar que “afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder”.

Uma vez que esse afrontamento está intimamente relacionado às questões que tratam sobre gênero e sexualidade, passou-se a entender como inevitável a associação entre pessoas homossexuais, bissexuais e assexuadas às pessoas transgêneras e intersexuais. É certo que esta ligação também foi promovida pelas próprias comunidades que se formaram em torno de tais pessoas, não apenas para unirem forças, mas por serem, desde tempos remotos, relegadas à margem da sociedade, por não se enquadrarem aos ditames do biopoder social binário-patriarcal-cisheteronormativo.

Ocorre que esta associação entre pautas identitárias e sexuais acabaram por relegar às pessoas transgêneras uma invisibilidade no que tange às necessárias políticas públicas que precisam ser discutidas e efetivadas em razão das questões que são intrínsecas às suas vivências e particularidades. Não se pretende afirmar que a conquista dos direitos por muito tempo renegados à população homossexual, em especial, deu-se de forma rápida, simples e sem muita luta e sangue derramado – vide o contexto histórico envolto à Revolta de Stonewall, movimentos feministas e às perseguições promovidas pela ditadura militar brasileira, por exemplo – , mas é certo que, em prol das pessoas transgêneras, ainda são ínfimas as vitórias no que diz respeito à efetivação de políticas públicas, em especial nas áreas da saúde, educação e acesso ao trabalho formal e digno.

Com relação à citada Revolta de Stonewall, ocorrida em 28 de junho de 1969, ela marca o dia internacional do orgulho pela diversidade sexual e de gênero. Conforme nos conta o National Grograpohic Brasil, “em 1969, batidas policiais em bares gays na região de Manhattan, na cidade de Nova York, nos EUA, seguiam um padrão. Policiais invadiam o local, ameaçando e espancando funcionários e clientes do bar. Os clientes saíam para a rua e formavam filas para que a polícia pudesse prendê-los. Mas não foi isso que aconteceu nas primeiras horas da manhã do dia 28 de junho de 1969, durante uma operação policial no bar Stonewall Inn. Clientes e curiosos reagiram — e a consequência foi uma confusão que durou dias e resultou em uma rebelião conhecida atualmente como a Revolta de Stonewall, um marco que ajudou a desencadear o movimento atual pelos direitos civis LGBTQIAP+.”

Porém, ainda que tenha ficado inicial e mundialmente conhecida como uma revolta promovida por homens gays, quem estava na linha de frente, durante os embates com a polícia de NY, era Marsha P. Johnson: mulher, negra, travesti, prostituta e drag queen. Era ela quem estava na linha de frente, em junho de 1969, em Nova York, na chamada Revolta de Stonewall, lutando em prol de uma comunidade inteira, contra a truculência, o autoritarismo e a violência policial cometida contra a população LGBTIA+.

Com 23 anos, Marsha transformou-se em uma ativista que salvaria milhares de vidas. Ainda, junto com sua amiga e ativista Sylvia Rivera, que também era uma mulher, trans e drag queen, criou o STAR, uma organização e abrigo para acolher transexuais e homossexuais que haviam sido expulsos de casa. Ela atuou, também, pela conscientização da AIDS e acolhimento de quem foi acometido pelo vírus HIV, organizando o ACT-UP. Arduamente, as duas lutaram pelo acesso ao trabalho por mulheres transgênero (transexuais e travestis).

Em 6 de julho de 1992, o corpo de Marsha foi encontrado boiando no Rio Hudson. A sua morte foi inicialmente definida como suicídio, mas o caso foi reaberto, em 2012, após muito esforço da ativista Mariah Lopez, em razão de provas encontradas que levariam à conclusão de que ela teria sido assassinada.

No Brasil, conforme bem apontam, por exemplo, Jovanna Baby Cardoso da Silva e Maria Clara Araújo dos Passos, a compreensão de como se deu a formação dos movimentos envoltos à diversidade sexual e de gênero, perpassa por discussões e ações organizadas por travestis e trabalhadoras sexuais, no final da década de 70, em meio à ditadura civil-militar.

Mais uma vez, a vigilância sobre corpos, identidades, práticas sexuais, a partir de aparatos jurídicos, cívico-morais, conservadores, procurava e promovia uma verdadeira perseguição às pessoas que desafiavam os sistema cisheteronormativo. A previsão da vadiagem, como contravenção penal; a caça às travestis e transexuais, pela operação tarântula, em São Paulo; a caça às travestis, trabalhadoras sexuais e aos gays, após o surgimento do HIV/Aids; as prisões arbitrárias, para averiguação, comandadas por tenentes, generais e delegados, em especial de mulheres transgêneras, marcam a luta pela sobrevivência de toda uma população que se via abnegada pelos aparatos jurídicos e de “defesa dos cidadãos de bem”.

Conforme bem exposto por Iyá Fernanda de Moraes, “a ditadura militar, ao longo de seus 21 anos de duração, perseguiu, torturou e assassinou, aproximadamente, 20 mil pessoas, segundo dados da organização internacional Registro de Direitos Humanos (Human Rights Watch), incluindo integrantes da população das mulheres transexuais e travestis brasileiras e demais pessoas LGBTI, que se tornaram alvos específicos por meio de operações focadas nesse grupo. Durante este período, a censura foi uma prática recorrente na invisibilização da população das mulheres transexuais e travestis, que não podiam ser mencionadas ou mostradas em jornais e programas de TV, salvo em raras exceções, como a manchete de 1º de maio de 1980, na qual o jornal O Estado de São Paulo publicou: ‘Polícia já tem plano conjunto contra travestis’”.

A perseguição era tamanha, que o potencial de agência e de resistência surgiu, em especial para mulheres travestis e transexuais, a partir do uso de uma linguagem adaptada que lhes acabou se tornando própria, chamada de Pajubá ou Bajubá, que, segundo Moraes, era “um dialeto ou criptoleto da linguagem popular constituída da inserção na língua portuguesa de numerosas palavras e expressões provenientes de línguas africanas ocidentais. Também muito usado pelo chamado povo do santo, ou seja, praticantes dos vários segmentos das Religiões de Matriz Africana e Afro-Brasileiras, tais como a Umbanda e Candomblé, e também pela população das mulheres transexuais e travestis brasileiras. Ademais é um socioleto baseado em várias línguas africanas, afro-brasileiras e afro-religiosas usadas inicialmente em Terreiros de Aṣé e Casas de Candomblé. Criado originalmente de forma espontânea em regiões de mais forte presença africana no Brasil, como terreiros e casas de candomblé (Awọn Ilè). Outrossim, é o dialeto resultante da assimilação de africanismos de uso corrente, que por fim resultam na incompreensível linguajar para quem não aprendesse, ou não aprende, previamente seus significados, então esse ‘linguajar popular’ a ser usado também como código entre a população das mulheres transexuais e travestis brasileiras e posteriormente adotado por todas as comunidades LGBTI e simpatizantes. Esse linguajar passou a ser utilizado pelas mulheres transexuais e travestis brasileiras que se prostituiam, durante o período da ditadura militar, como meio de enfrentar a repressão policial e despistar a presença de pessoas indesejadas”.

Outro fato importante, que denota a importância do conhecimento da história que está envolta à luta por direitos civis, pela comunidade LGBTI+, no contexto nacional, ocorreu em 19 de agosto de 1983, e ficou conhecido como o Levante do Ferro’s Bar, por ser a primeira manifestação protagonizada por lésbicas contra a discriminação, ao lado de líderes de movimentos feministas, travestis, transexuais e parlamentares da capital paulista.

Então, não esqueçamos que, no Brasil, temos o marco de início de lutas e de táticas de resistência, associadas às travestis e transexuais, e que, no exterior, quem deu início às revoltas que transformaram o mês de junho em um mês em que se promove a visibilidade e a diversidade, foi uma MULHER, TRAVESTI, PRETA, PROSTITUTA e DRAG QUEEN. Viva a diversidade e a memória.

 

Referências

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CARDOSO DA SILVA, Jovanna. Bajubá Odara: resumo histórico do nascimento do movimento social de travestis e transexuais do Brasil. Picos, PI: Jovanna Cardoso da Silva, 2021.

BLAKEMORE, Erin. Revolta de Stonewall deu origem ao movimento atual pelos direitos LGBTQIAP+. Disponível em: site. Acesso em: 16 jun. 2023.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7 ed. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

MORAES, Iyá Fernanda de. As raízes históricas do Pajubá ou Bajubá. Disponível em: site. Acesso em: 19 jun. 2023.

PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogias das travestilidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

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