NP Em Branco Complementada Por Ato Estadual Ou Municipal No Contexto Pandêmico

NP Em Branco Complementada Por Ato Estadual Ou Municipal No Contexto Pandêmico

top-view-career-guidance-items-judges

Inicia-se essa coluna com a análise de um importante julgado proferido no ARE 1418846/RS pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em março deste ano, oportunidade em que a Suprema Corte fixou a Tese 1246, segundo a qual “O art. 268 do Código Penal veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), respeitadas as respectivas esferas de atuação, sem que isso implique ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito penal (CF, art. 22, I)”. Vamos entender, sinteticamente, as razões que levaram o STF a decidir nesse sentido.

No caso julgado, Maria (nome fictício), no auge da pandemia da Covid-19, em descumprimento a um decreto estadual que determinava imediato lockdown, com vontade e consciência da ilicitude de seu ato, infringiu a citada determinação destinada a impedir a propagação do vírus, ao manter seu estabelecimento comercial em funcionamento. A despeito da proscrição e do contexto de excepcionalidade, em que uma pandemia nas proporções em que ocorrera inspirava drásticas medidas sanitárias interventivas por parte das autoridades públicas das três esferas federativas (federal, estadual e municipal), Maria, com sua conduta, colocou em risco a saúde coletiva e a incolumidade pública, segundo a tese acusatória..

Com isso, o Ministério Público Estadual (MPE) ofereceu denúncia em desfavor de Maria, endereçada ao Juizado Especial Criminal, pela prática do crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no art. 268, do Código Penal (CP), nos seguintes termos:

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Pois bem. A denúncia foi rejeitada na primeira instância, sob o fundamento de que o fato era atípico. O MPE recorreu da decisão perante a Turma Recursal, a qual confirmou a sentença ao entender que o dispositivo legal em apreço contém norma penal em branco carente de complementação pelo ente federal, ou seja, não é válido o ato administrativo complementar editado por ente estadual, vez que à União (fonte material ou de produção por excelência do Direito Penal) compete privativamente legislar sobre matéria criminal, conforme art. 22, inciso I, da Constituição Federal (CF). Segundo o raciocínio da corte local, na ausência de lei complementar autorizando os Estados a legislar sobre questões específicas de Direito Penal (art. 22, parágrafo único, CF), o complemento exigido pela norma penal em branco deveria ter partido da União para fins de incidência do art. 268, do CP.

Inconformado, o MPE interpôs recurso extraordinário (RE), inicialmente inadmitido pelo Tribunal de Justiça estadual com base na Súmula 283, do STF (É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles), por entender essa corte que o recurso ministerial não havia abordado todos os fundamentos do acórdão atacado proferido pela Turma Recursal, notadamente quanto ao que a competência concorrente dos entes federativos para adoção de medidas restritivas durante a pandemia sanitária não se estendem à esfera criminal. O MPE interpôs agravo junto ao STF, que levou esse Tribunal Superior a admitir o RE e a reconhecer a repercussão geral do caso.

No mérito, discutiu-se sobre a constitucionalidade da complementação de norma penal em branco por ato normativo estadual (ou municipal) para aplicação do art. 268, do CP. Ao final, o STF proveu o agravo em recurso extraordinário (ARE) no sentido de determinar o prosseguimento do feito na instância de origem, ao fundamento de que a edição de atos normativos estaduais ou municipais integram a estrutura normativa do tipo penal, servindo de complementação à norma penal em branco integrada.

Mas, afinal, o que é uma norma penal em branco e por que ela necessita de complementação?

As normas penais são compostas de duas partes: o suposto fático (de natureza descritiva) e a consequência jurídica (sanção). Via de regra, o conteúdo que confere completo significado a uma e a outra, que permite uma clara compreensão da proibição veiculada, está explicitado, sem oferecer dificuldade maior. Entretanto, para atender a exigências de técnica legislativa, o legislador penal, que não é especialista em matérias eminentemente técnicas e no intuito de evitar contradições internas entre os ramos jurídicos, opta por normas penais que necessitam de uma complementação prevista em outro dispositivo normativo para permitir a delimitação do conteúdo da proibição e do âmbito de alcance do tipo penal. Em outros termos, a abrangência da norma penal somente estará estabelecida com a adição de um complemento estranho a seu desenho estrutural originário, necessitando, consequentemente, que seu significado proscritivo seja definido. A essa espécie de norma penal “complementável”, dá-se o nome de norma penal em branco.

A norma penal em branco, aparentemente, contrasta com o princípio da legalidade – de aporte constitucional -, vez que é desprovida de uma definição clara da conduta que o legislador penal busca proibir (art. 5º, inciso XXXIX, CF; art. 1º, CP). Entretanto, segundo a jurisprudência do STF, o alegado contraste é irreal, já que a definição da conduta ocorre com o ato normativo complementar, perfectibilizando o tipo penal, em observância ao princípio da legalidade.

Segundo Francisco Munõz Conde e Mercedes García Arán, em citação à sentença 127/1990, de 5 de julho, do Tribunal Constitucional espanhol, a norma penal em branco, para respeitar o princípio da legalidade, deve preencher os seguintes requisitos, quais sejam (MUNÕZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2019, p. 103):

a) O reenvio normativo deve ser expresso (não tácito) e estar justificado por razão do bem jurídico protegido na norma penal (no sentido de que se trate de uma matéria que seja objeto de regulação não somente no Direito penal, mas também em outro setor do ordenamento jurídico);

b) A lei penal, além de assinalar a pena, deve conter o núcleo essencial da proibição. Isto é, deve incluir um conteúdo de desvalor que permita diferenciar o fato constitutivo de delito da infração de outro ramo do ordenamento jurídico que também é elemento do tipo;

c) Deve satisfazer a exigência de certeza ou dar-se a suficiente concreção para que a conduta qualificada de delitiva reste suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma a que a lei penal se remete;

De outra sorte, as normas penais em branco podem ser classificadas da seguinte forma:

a) Normas Penais em Branco homogêneas (em sentido amplo ou homólogas). Estas se subdividem em:

a.1) homovitelinas;

a.2) heterovitelinas

b) Normas Penais em Branco heterogêneas.

A diferença entre a) e b) está no fato de o complemento derivar de mesma fonte legislativa (norma penal em branco homogênea) ou de fonte legislativa diversa (norma penal em branco heterogênea)  da que editou a norma que necessita desse complemento (GRECO, 2016, p. 70-71). As normas penais em branco homogêneas podem ser homovitelinas (caso o complemento da idêntica fonte legislativa for uma lei penal) ou heterovitelinas (se o complemento for uma  lei não penal). Exemplo de norma penal em branco homogênea homovitelina: o art. 150, CP, prevê o crime de violação de domicílio, definindo o que se compreende como “casa” em seu §4º (e do que não é considerado como “casa”, em seu §5º). Note que o complemento provém de lei de caráter igualmente penal. Exemplo de norma penal em branco heterovitelina: O art. 237, CP, prevê o crime de   conhecimento prévio de impedimento a casamento. Entretanto, as causas impeditivas do casamento encontram-se no art. 1.521, do Código Civil, ou seja, não estão listadas em lei penal, mas sim em outro setor do ordenamento jurídico (no caso, no Direito Civil). Por fim, as normas penais em branco heterogêneas são aquelas cujo complemento deriva de fonte de produção diversa daquela que a criou. Um exemplo bastante citado de norma penal em branco heterogênea é aquela contida no art. 28, da Lei n. 11.340/2006 (Lei de Drogas), que, para se definir o conteúdo e o alcance da proibição, remete à atual Portaria 344/1998, da ANVISA (uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Saúde), objeto de constantes alterações por resoluções de sua diretoria colegiada (a mais recente é a RDC 784, de 31 de março de 2023) (ANVISA, 2023). Com efeito, o art. 14, inciso I, alínea “a”, do Decreto 5.912/2006 determina que o Ministério da Saúde publicará listas atualizadas periodicamente das substâncias ou produtos capazes de causar dependência.

A doutrina também aponta para a existência de normas penais em branco incompletas ou imperfeitas (conhecidas também por normas penais em branco inversa ou ao avesso) (GRECO, 2016, p. 72). Nestas, o preceito secundário, que estabelece em abstrato a sanção aplicada em razão da prática delitiva, é que exige complementação. O conteúdo da consequência jurídica encontra-se em outro dispositivo. Um exemplo vulgar citado pela doutrina é a Lei 2.889/56, que define condutas que configuram crime de genocídio.

 

Em casos mais excepcionais, pode-se encontrar normas penais em branco ao quadrado ou duplamente em branco, em que se exige complementação tanto para o preceito primário, quanto para o preceito secundário. O intérprete deverá recorrer a dispositivos normativos outros para delimitar com precisão o conteúdo da proibição e da sanção criminal, e, por via de consequência, o âmbito de alcance da norma penal. Com essa manobra, o princípio da legalidade, que incide tanto  sobre a definição típica, quanto sobre a pena, é preservado. Pode-se citar como exemplo o art. 304, CP, que dispõe sobre o crime de uso de documento falso e a correspondente sanção nos termos a seguir. Nota-se que tanto o preceito primário, quanto o secundário necessitam de dispositivos normativos complementares, no caso em especial, encontrados no próprio código:

Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302: Pena – a cominada à falsificação ou à alteração.

Voltando ao julgado que serve de base ao nosso estudo, verifica-se que o núcleo essencial da proibição (núcleo duro proibitivo) está contido na estrutura normativa da norma penal em branco, já que a descrição, apesar de incompleta, descreve a conduta proibida (Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa) e a abrangência normativa é fixada com grau de certeza satisfatório ao ser complementada com o decreto estadual que determinou o lockdown; o reenvio normativo é expresso, posto que o tipo faz remissão a uma determinação do poder público de natureza sanitária que busca por observância; o complemento assegura o princípio da proteção suficiente ao tutelar bens jurídicos caros à sociedade à luz do episódio pandêmico, em resguardo da incolumidade pública e da saúde coletiva (o lockdown foi uma das medidas preventivas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e adotada genericamente por Municípios e Estados brasileiros, para reduzir a propagação do vírus).

O STF entendeu que a norma penal em branco contida no art. 268, CP, é de natureza heterogênea, pois, de fato, o complemento deriva de fonte de produção diversa daquela que a editou. E a corte foi além. Entendeu que esse complemento pode ser editado por Estados e Municípios, não se atendendo apenas à União, isto é, a aplicação da norma penal estará suficientemente assegurada e a conduta suficientemente subsunta ao tipo penal com um ato normativo complementar editado por entes federativos outros que não a União.

Em seu voto, a Ministra Rosa Weber reportou-se a julgados anteriores em que o Tribunal teve a oportunidade de assentar a constitucionalidade de atos normativos estaduais editados durante a pandemia, uma vez que a competência dos Estados, dos Municípios e da União para impor medidas de proteção à saúde é compartilhada, nos níveis legislativo e administrativo à vista do art. 198, inciso I, CF.

Diante de um caso concreto, percebe-se a importância da apropriação epistêmica de conceitos jurídicos para a solução de imbróglios. Apontamentos sobre a teoria da norma penal foram exaustivamente manejados pelo STF no recurso acima e serviram, em última análise, por meio do mecanismo do reconhecimento da repercussão geral e da fixação da Tese 1246, solucionar diversos outros em que se discutia o tema.

 

 

Referências

____________________

1. ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 784, de 31 de março de 2023. Publicada no DOU n. 65, de 4 de abril de 2023. Disponível em: site. Acesso em: 28 jun. 2023.

2. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 18 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016.

3. MUNÕZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General. 10 ed. Madrid: Tirant lo Blanch, 2019.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio