A incompatibilidade entre a prisão preventiva e o regime semiaberto

A incompatibilidade entre a prisão preventiva e o regime semiaberto

criminoso-algemado

O tema do estudo do mês foi selecionado a partir de uma decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida no Agravo regimental em Habeas Corpus 214.070/MG, de fevereiro deste ano, oportunidade em que a corte entendeu pela ocorrência de constrangimento ilegal em decorrência da incompatibilidade entre o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade e a manutenção da prisão preventiva assim deliberada em sentença condenatória (não transitada em julgado).

 

Imagine a situação: um réu, mantido em prisão preventiva no decorrer do processo, sob a acusação de prática do crime previsto no art. 2º, §4º, incisos I e II, da Lei n. 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), ao término da instrução, foi condenado a cinco anos de reclusão, em regime semiaberto, e a 20 dias-multa. Na sentença, ao deliberar sobre a prisão preventiva, como prevê o art. 389, §1º, do Código de Processo Penal (CPP), a autoridade judicial negou ao réu o direito de recorrer em liberdade, ou seja, manteve a custódia cautelar sob fundamentos semelhantes àqueles utilizados outrora para sua decretação.

Pois bem. Inconformada e alegando incompatibilidade entre o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade diverso do fechado e a condição de preso cautelar, a defesa chega ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela via do habeas corpus, superadas, obviamente, as devidas instâncias de impugnação, a fim de ver reconhecida situação que configure o constrangimento ilegal apontado e, enfim, a concessão do writ.

Monocraticamente, o ministro relator do STJ denegou o pedido de habeas corpus,  mantendo a prisão preventiva à vista da apontada necessidade de assegurar a ordem pública; da incontornável gravidade elevada do caso em razão da grande quantidade de drogas apreendidas – a seu ver, de onde se infere a probabilidade elevada de reiteração delitiva – , bem como por se tratar de crime hediondo sancionado com pena privativa superior a quatro anos.

Diante dessa decisão desfavorável aos interesses do paciente, a defesa manejou pedido de habeas corpus junto ao STF que, através de sua Segunda Turma, deu provimento ao agravo regimental para conceder o writ almejado, a determinar a revogação da prisão preventiva e a devolução dos autos à instância originária para, caso entenda necessário, impor, motivadamente, cautelares alternativas à prisão.

Por se tratar de um estudo expedito, opta-se por não adentrar a pormenores factuais do caso concreto para se ater às informações acima destacadas, julgadas suficientes para o alcance do objetivo, qual seja, compreender como se dá a incompatibilidade entre a prisão preventiva e o regime semiaberto antes do esgotamento da fase recursal.

De antemão, mostra-se necessária como recurso explicativo uma comparação por dessemelhanças entre a regulação pertinente à prisão preventiva, sob uma perspectiva meramente “prático-mecanicista” (de que forma ela se realiza), e os contornos regulatórios próprios do regime semiaberto enquanto modo de cumprimento da pena privativa de liberdade.

A prisão preventiva é uma espécie do gênero medida cautelar, que, como as demais espécies, realizam-se, incidentalmente, durante a investigação, o processo de conhecimento ou de execução, segundo as hipóteses e os requisitos legais. O art. 312, do CPP, prevê que “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (Brasil, 2023).

De todo modo, há um tensionamento axiológico entre a prisão preventiva e a presunção de inocência, e a equalização devida dependerá, crucialmente, segundo Lopes Jr., da satisfação de princípios balizadores, como a jurisdicionalidade e motivação; contraditório; provisionalidade (vez que a prisão é sempre situacional, ao visar uma situação fática); provisoriedade (a prisão deve ser sempre de breve duração); excepcionalidade; e proporcionalidade (Lopes Jr, 2013, p. 786-804). Dentre estes, destaca-se a proporcionalidade para se atender ao objetivo proposto.

Na mesma esteira, para Pacelli, ao comentar sobre a prisão preventiva:

Referida modalidade de prisão, por trazer como consequência a privação da liberdade antes do trânsito em julgado, somente se justifica enquanto e na medida em que puder realizar a proteção da persecução penal, em todo o seu iter procedimental, e, mais, quando se mostrar a única maneira de satisfazer tal necessidade (Pacelli, 2020, p. 683).

 A prisão preventiva – uma medida cautelar extrema e excepcional, frisa-se – é cumprida em condições semelhantes ao “regime fechado” (no sentido de cerceamento absoluto da liberdade), com o gravame de não comportar benefícios inerentes à execução penal com vistas à “progressão de regime”. Além disso, apesar de ser uma medida cautelar marcada pela proporcionalidade, provisoriedade (ou precariedade), sua duração é indefinida no tempo, o que frustra qualquer cálculo utilitário projetivo à devolução da liberdade, sobretudo, pela impertinência teleológica, inexistente um programa ressocializante para tanto.

Não é necessário maiores esforços para se constatar que a coexistência da prisão preventiva com o regime semiaberto como aquele inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade evidencia um maltrato sintomaticamente antidemocrático tanto ao princípio da proporcionalidade, quanto o da presunção de inocência. A equação resulta na execução provisória da pena privativa de liberdade, censurada pelo art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (CF), e art. 283, do CPP1 .

Então, em que medida a prisão preventiva é incompatível com o regime semiaberto? Além das inferências acima apresentadas, tem-se que o cumprimento da reprimenda sob as condições do semiaberto permite uma flexibilidade à liberdade privada que é inexistente na prisão preventiva, em razão da própria configuração e natureza dessa cautelar. Segundo o art. 35, §1º, alínea “b”, do Código Penal (CP), “a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto e a de detenção, em regime semiaberto ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado”, entendendo-se por regime semiaberto “a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar” (Brasil, 2023). O art. 35, § 1º, também do CP, dispõe, em sequência que “o condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar” (Brasil, 2023). Adiante, o art. 35, §2º, do CP, complementa ao permitir o trabalho externo, bem como a frequência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (Brasil, 2023).

Em cotejo entre uma e outra situação jurídica, conclui-se que as exigências de necessidade e de adequação das medidas cautelares (o que inclui a prisão preventiva), previstas no art. 282, incisos I e II, do CPP, imanentes à proporcionalidade, foram de todo desconsideradas no caso concreto submetido ao julgamento de destaque. A excepcionalidade da prisão preventiva também o foi, vez que o art. 282, §6º, do CPP, determina que “a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada” (Brasil, 2023). De todo modo, percebe-se que a manutenção da prisão preventiva diante de um regime inicial diverso do fechado, o qual configura a pior situação jurídica antevista para o condenado iniciar o cumprimento da pena privativa em caso de improvimento de seu recurso defensivo, impõe-lhe, na prática, uma punição mais dura do que a projetada na sentença condenatória, sem substrato legitimante algum.

Ademais, há um fato intrínseco inédito não considerado na sentença que a um só tempo condenou o acusado e manteve a prisão preventiva, que é o advento da própria condenação com a fixação de regime inicial diverso do fechado, antecedida do sopesamento fundamentado de circunstâncias concretamente realizadas que conduziram o julgador à imposição de um regime mais brando. A sentença guarda consigo uma incoerência lógico-procedimental que atinge as escolhas políticas de fixação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade mais ampliativo e as contrasta com as razões para manter o acusado em privação absoluta de liberdade ao negar-se-lhe o direito de recorrer em liberdade. Como bem sinalizado pelo Ministro André Mendonça em seu voto, “a medida privativa de liberdade deve ser coerente com os fundamentos adotados para fixação do regime inicial de cumprimento de pena diverso do fechado” (STF, 2023).

O mesmo ministro também aponta que uma terceira via, de tentativa de adequação da prisão preventiva ao regime semiaberto, não é uma opção possível, face à carência de respaldo legal, além de configurar a antecipação do cumprimento de pena que, como sabido, é inviável no ordenamento jurídico (STF, 2023).

Por fim, na oportunidade desse julgamento, citando diversos precedentes da corte, a Segunda Turma reforçou que, assim como entendido em ocasiões anteriores, em casos excepcionais, conquanto que respeitada a proporcionalidade em concreto, é admissível a manutenção da prisão preventiva diante de casos de reiteração delitiva ou mesmo de violência de gênero (STF, 2023).

 

Referências

____________________

1. Vide ADCs 43/DF, 44/DF e 54/DF, julgadas pelo STF.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.889, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, Disponível em: site. Acesso em: 10 nov. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, Disponível em: site. Acesso em: 10 nov. 2023.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AgR/MG no HC 214.070. Relator: relator Ministro Nunes Marques, redator do acórdão Ministro Dias Toffoli. Brasília, 20 de junho de 2023. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 24 ago. 2023. Disponível em: site. Acesso em: 4 set. 2023.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio