A judicialização da saúde consiste na busca de medicamentos, tratamentos ou vagas hospitalares por meio de ações judiciais. O fornecimento de medicamentos pelo SUS está previsto na Lei 8.080/90, o qual prevê:
Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I – a execução de ações:
a) de vigilância sanitária;
b) de vigilância epidemiológica;
c) de saúde do trabalhador; e
d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;1
A alínea “d”, ao delinear a assistência farmacêutica, constitui a base jurídica para o fornecimento de medicamentos. Com base nisto, o Ministério da Saúde pública o RENAME, que consiste na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. O referido documento possui diversas listas de medicamentos em várias áreas médicas, bem como também enumera as inclusões e exclusões realizadas. Também tem uma relação de fornecimento de insumos e medicamentos de uso hospitalar.2
De fato, a Constituição Federal elenca o direito à saúde como um direito social a ser implementado em políticas públicas. Assim, em um primeiro momento, pode-se ter a impressão que o mesmo deve ser tutelado apenas por atendimento a demandas coletivas. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que este direito pode ser tutelado em base individual, mediante demandas específicas, no contexto da judicialização da saúde. Segundo o Instituto Fiocruz:
em 2019, uma reportagem do jornal Valor Econômico, republicada no portal do Tribunal Regional Federal do Estado do Rio de Janeiro (TRF 2), estimava os gastos do Ministério da Saúde (MS) para cumprir as decisões judiciais de aquisição de remédios que não estejam registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em R$ 1,3 bilhão, no ano anterior. A judicialização da saúde atinge mais governos municipais e estaduais, e o impacto no próprio MS foi de 4.600% entre os anos de 2007 e 2018.3
A judicialização da saúde é um fenômeno complexo, que produz consequências positivas e negativas. O aspecto positivo é que com a judicialização, medicamentos e procedimentos que não eram cobertos pelo SUS passaram a serem custeados. Da mesma forma, tais ações judiciais expuseram algumas deficiências do sistema que passaram a ser corrigidas.
Ao analisar o histórico da judicialização no Brasil, é possível verificar que um dos seus marcos foi a questão dos medicamentos para o tratamento da AIDS na década de 1990. Graças a essas demandas foi se criando a mentalidade da necessidade de o Estado tutelar o direito dessa camada da população que inclusive sofria forte preconceito social. Em 1996 o grupo de “Apoio a Prevenção à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” obteve vitória judicial em face do Estado de São Paulo, garantindo o fornecimento gratuito de medicamentos. Este julgamento serviu de precedente para a posterior inclusão de tais tratamentos na lista do SUS.4
O aspecto negativo é que a judicialização muitas vezes gera desequilíbrio orçamentário. Isso ocorre principalmente quando o judiciário determina a cobertura de medicamentos muito caros, as vezes em fase experimental. O atendimento a demandas específicas acaba dificultando ou até mesmo comprometendo políticas públicas que poderia em tese beneficiar mais pessoas.
Diante deste impasse, o judiciário tem buscado parâmetros para determinar em quais circunstâncias as demandas por medicamentos e tratamentos devem ser atendidas. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem analisado tais questões.
No conhecido julgado da Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional nº 45 (ADPF 45), o STF entendeu que na hipótese de os órgãos estatais falharem em assegurar os direitos humanos de segunda geração (direito à saúde e direitos sociais), cabe ao judiciário assegurá-los ao cidadão. Restou vencida a tese da Teoria da Reserva do Possível, em virtude da natureza jurídica dos direitos tutelados. No RE 855.178 de procedência do Estado de Sergipe, o STF definiu a responsabilidade solidária entre os entes da federação para cumprir com obrigações de demandas de saúde. Determinou, que caberá ao julgador direcionar o ente responsável para o cumprimento da ordem judicial.
No RE 657.718 de procedência do Estado de Minas Gerais, o STF entendeu que que, regra geral, o poder público não pode ser obrigado a fornecer medicamentos quando os mesmos são experimentais e sem registro na ANVISA. No entanto, abriu a exceção para o fornecimento de medicamentos sem registros, desde que preenchidos três requisitos: (1) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (2) a existência do registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior e (3) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. Ademais, também definiu que tais ações devem ser demandas exclusivamente contra a União Federal.
No entanto, há um caso interessante em julgamento no STF. No RE 566.471 de procedência do Estado do Rio Grande do Norte e que tem o ministro André Mendonça como relator, o STF vai decidir se o Estado tem o dever de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não tem condições financeiras de adquirir o mesmo.
Assim, é possível observar que o próprio STF busca realizar um balanceamento entre a satisfação em casos concretos do direito fundamental a saúde e o impacto orçamentário de tais demandas.
Referências
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1. Disponível no site do PLANALTO, 2023.
2. Disponível no site do RENAME, 2022.
3. Disponível no site da FIOCRUZ, 2023.
4. MELLO, R.G.de. O fornecimento de medicamentos pelo poder público e a competência da Justiça Federal, Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, V.27, p.139-150, 2010.