A privacidade é um direito fundamental que voltou a ser objeto de profundos estudos com o avanço da tecnologia e, especialmente, diante da edição de legislações acerca de proteção de dados.
Muitos de nós já sabem que a origem da privacidade decorre de um artigo e da jurisprudência de juristas norte-americanos que defendiam o direito a ser deixado só (right to be let alone).
No Brasil a privacidade é assegurada pela Constituição Federal, embora sem o emprego deste termo específico. De acordo com a teoria dos círculos concêntricos, existem diversos níveis de proteção das individualidades de cada pessoa natural, sendo a privacidade, a intimidade e o segredo, do mais abrangente ao mais restrito quanto ao acesso de terceiros.
De uma forma bastante didática, Eric Hughes1 afirmou que “Um assunto privado é algo que não se quer que o mundo inteiro saiba, mas um assunto secreto é algo que não se quer que ninguém saiba. Privacidade é o poder de se revelar seletivamente ao mundo”.2
E eu digo que a privacidade ganhou ainda mais relevância com o avanço da internet por um motivo histórico que não são muitas pessoas que conhecem: a origem da internet.
A internet foi construída para finalidade de comunicação militar durante a Guerra Fria. Assim, desde a sua origem, a internet está relacionada intrinsecamente ao Estado. Embora atualmente os provedores de conexão e/ou aplicações não estejam tão próximos do Poder Público, pelo menos em grande parte dos países do mundo, ainda temos a possibilidade de obtenção de diversos dados relacionados a pessoas naturais que se utilizam dessa importante ferramenta pelo Poder Público, seja através de atuação do Poder Judiciário no exercício da jurisdição, seja através da atuação do Poder Público quando no exercício de suas funções na governança da internet.
Em países com menor nível de proteções individuais e maior autoritarismo, a ingerência estatal nos serviços digitais é ainda mais alta.
Por estes motivos surgiu o movimento dos Cypherpunks, que era formado por um grupo de matemáticos, programadores e cripto-anarquistas que defendiam, sem vinculação a uma ideologia política única, a privacidade. No Manifesto Cypherpunk o matemático e criptógrafo Eric Hughes já deu o tom dos valores do movimento:
Não podemos esperar que governos, corporações ou outras grandes organizações sem rosto nos concedam privacidade por sua beneficência. É vantajoso para eles falar de nós, e devemos esperar que eles falem. Tentar impedir seu discurso é lutar contra as realidades da informação.3
Parece muito razoável que inúmeras pessoas busquem meios de evitar a intromissão indevida de outrem em suas vidas. Algum tempo depois do surgimento dessas discussões cujo objetivo principal era assegurar a privacidade, houve a publicação do documento que deu origem ao primeiro criptoativo: o White Paper4 do Bitcoin.
E para aqueles que já estudaram um pouco sobre Bitcoin, pode surgir uma dúvida comum. Bitcoin é baseado na Blockchain que, por sua vez, trabalha com o registro público de operações. Qualquer pessoa pode obter uma cópia de todas as transações já registradas em Blockchain sem grandes dificuldades.
A privacidade é tratada nos criptoativos de maneiras distintas. No Bitcoin, por exemplo, Satoshi Nakamoto5 reserva um tópico específico do White Paper para explicar como a privacidade é garantida no protocolo.
Apenas para rememorar, Nakatomo classifica o Bitcoin como um sistema de dinheiro eletrônico ponto-a-ponto. Por isso, Satoshi compara a privacidade do Bitcoin com a privacidade das operações financeiras comuns, em que é limitado às partes e o terceiro de confiança (um banco, por exemplo) o acesso às informações das partes envolvidas na transação.
Aqui, vale um parênteses: por mais que o banco mantenha seus sistemas de segurança da informação ativos e em funcionamento, todos nós sabemos que diversos funcionários, além da própria instituição, têm acesso aos nossos dados. Assim como já dito, o Poder Público também tem acesso em alguns momentos, como quando realizamos alguma operação sujeita a notificação compulsória ao COAF. Podemos perceber, portanto, que o conhecido sigilo bancário não é verdadeiramente um sigilo, mas apenas reduz a abrangência de pessoas que podem acessar nossas informações financeiras.
Já no Bitcoin, a privacidade é garantida com a eliminação do terceiro de confiança, além da desvinculação do endereço da carteira digital dos seus respectivos titulares. Assim, ainda que haja o registro da transação de maneira pública, sem a necessária identificação de quem é o titular daquela chave pública, não há uma publicidade indesejada de quem a realizou.
De maneira extremamente didática, Satoshi explica que “É similar ao nível de informação publicado pela bolsa de valores, onde data e montante dos negócios individuais, a “fita”, é tornada pública, mas sem divulgar quais as partes”.6
E mais, também é possível transferir (embora não seja aconselhável fazer) os criptoativos para terceiros apenas fornecendo ao novo titular a chave privada da carteira, sem maiores formalidades e sem a necessária ciência de terceiros acerca da operação.
Existem outros projetos, tal como a Monero, que foram criados justamente para assegurar a realização de operações anônimas, de modo que o protocolo já foi projetado para assegurar a privacidade dos seus usuários.
É importante relembrar, no entanto, que a privacidade é um direito fundamental e, portanto, não deve ser buscada apenas por quem pratica algum tipo de ilícito. É comum que pessoas, mesmo sem praticar nenhum ilícito, prezem pela sua privacidade.
E nesse ponto, cito Daniel Duarte “No limite, acredito que certo grau de privacidade é condição sine qua non de liberdade, pois nem todo comportamento lícito é aceito socialmente”.7 E o autor continua ao afirmar que pode ser dificil identificar a importância da confidencialidade a uma pessoa individualmente, mas traz uma importante analogia ao ressaltar a importância para a sociedade: “Você pode fazer uma analogia com as estradas: um cidadão individual pode não precisar de uma estrada por mil quilômetros, porém a sociedade inteira se beneficia de uma infraestrutura de transporte desenvolvida.8
Conclui-se, portanto, que além das características econômicas, os criptoativos também inauguram uma nova perspectiva para a privacidade, o que os tornam um ativo ainda mais relevante, tanto em países autoritários, como também para todos aqueles que se interessam pela preservação das suas liberdades individuais.
Referências
____________________
1. Eric Hughes foi um dos fundadores do movimento Chyper Punks e escritor de “Um Manifesto Chyperpunk”.
2. Tradução literal do texto A Chyperpunk’s Manifesto. Disponível em: link.
3. HUGHES, Eric. The Cypherpunk’s Manifesto. Disponível em link. Acesso em 06 de novembro de 2023.
4. White Paper é o nome dado ao documento que inaugura o conceito e traz a explicação do Bitcoin ao público em geral.
5. Satoshi Nakamoto é o pseudônimo adotado pelo criador do Bitcoin, que mantém sua real identidade sob anonimato.
6. NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: Um Sistema de Dinheiro Eletronico Ponto-a-Ponto. Disponível em: link. Acesso em 06 de novembro de 2023.
7. DUARTE, Daniel. BITCONOMICS: Uma História de Rebeldia [ebook]. São Paulo: LVM Editora, 2021, p. 115.
8. Idem.