O estudo do mês abordará, em rápidas notas, uma relevante decisão que resultou, recentemente, na fixação da Tese 788, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao assentar o entendimento de que o prazo prescricional da pretensão executória estatal inicia-se com o trânsito em julgado não apenas para a acusação, mas também para a defesa, julgando a Corte como não recepcionada pela Constituição Federal (CF/88) a expressão “para a acusação”, prevista na primeira parte do art. 112, inciso I do Código Penal (CP).
No ARE 848.107/DF, de relatoria do Min. Dias Toffoli, com julgamento concluído em julho de 2023, o STF teve a oportunidade de reafirmar a jurisprudência revisada nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 53, ao entender que a previsão constante da primeira parte do art. 112, inciso I, do CP, no que concerne à expressão “para a acusação”, não foi recepcionada pela CF/88, incorrendo na eliminação desse trecho específico. Com essa medida, a Corte solapa a possibilidade da chamada “execução provisória da pena” e de questionamentos sobre eventual incoerência lógica com a jurisprudência atual repousante sobre esse dispositivo. Em outros termos, adequa-se, em boa hora, o preceito submetido ao escrutínio do STF ao conteúdo ético do princípio da presunção de inocência, ao tempo em que preserva a devida unidade hermenêutica sistêmica ao fixar a Tese 788 nos seguintes termos:
É incompatível com a atual ordem constitucional — à luz do postulado da presunção de inocência (CF/1988, art. 5º, LVII) e o atual entendimento do STF sobre ele — a aplicação meramente literal do disposto no art. 112, I, do Código Penal. Por isso, é necessário interpretá-lo sistemicamente, com a fixação do trânsito em julgado para ambas as partes (acusação e defesa) como marco inicial da prescrição da pretensão executória estatal pela pena concretamente aplicada em sentença condenatória.
Porém, afinal, o que é a prescrição da pretensão executória e no que implicava a expressão “para a acusação” em termos práticos?
Antes de qualquer verticalização temática, para se compreender as razões embutidas na tese acima, convém trazer à baila a definição de prescrição penal e, em particular, de uma de suas espécies, a prescrição da pretensão executória (PPE), instituto trabalhado na decisão em destaque.
A prescrição é uma causa de extinção da punibilidade com previsão no art. 107, inciso IV, primeira parte, do CP. O tempo é um fato jurídico que também surte efeitos sobre o exercício do direito de punir do Estado. Em razão de eventual inércia do Estado, deixando de exercer essa prerrogativa dentro de um prazo legal, ele acaba por perdê-la em nome do anseio social de estabilidade da ordem jurídica e da segurança jurídica. A prescritibilidade penal é a regra no ordenamento jurídico1, tratando-se de uma garantia constitucional implicitamente assegurada.
Greco (2016, p. 853) define a prescrição como “o instituto jurídico mediante o qual o Estado, por não ter tido capacidade de fazer valer o seu direito de punir em determinado espaço de tempo previsto pela lei, faz com que ocorra a extinção da punibilidade”. Trata-se a prescrição de uma opção político-criminal conectada ao princípio da segurança jurídica.
Para um segmento doutrinário, a exemplo de Greco (2016, p. 854) e Souza (2019, p. 468), a prescrição possui natureza de direito material, orientada pelo art. 10, do CP, isto é, com previsão de inclusão do dia do começo no cômputo do prazo e de exclusão do derradeiro (não se sujeitando a quaisquer interrupções ou suspensões), bem como pelo princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, previsto no art. 2º, do CP, e no art. 5º, inciso XL, da CF/88.
O CP prevê duas espécies principais de prescrição, uma que atinge a pretensão punitiva (prescrição da pretensão punitiva ou PPP) e outra, a pretensão de execução da pena (prescrição da pretensão executória ou PPE). A PPP pode fundamentar-se em uma pena em abstrato, de molde a inviabilizar o início da ação penal ou simplesmente paralisá-la, ou em uma pena em concreto, podendo ser retroativa ou intercorrente.
O que interessa particularmente neste espaço é a PPE, de que ocupa o art. 112, do CP. Antes, o art. 110 prevê que “a prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente”. De todo modo, a PPE (sempre embasada na pena concretamente aplicada por sentença) começa a correr do dia em que a sentença alcançou o trânsito em julgado. Uma vez reconhecida a ocorrência da PPE, somente a pena principal é afetada, persistindo os demais efeitos da condenação imposta.
Há de se observar que, “no caso de evadir-se o condenado ou de revogar-se o livramento condicional, a prescrição é regulada pelo tempo que resta da pena”, assim previsto no art. 113, do CP. Ademais, como lembra Souza (p. 473), a interrupção da PPE ocorre em apenas duas hipóteses, a saber, quando do início ou continuação do cumprimento de pena e com a reincidência para aquele que cometer novo crime durante a execução da sanção. A suspensão da PPE, por sua vez, opera durante o tempo em que o condenado está preso por outro processo.
A celeuma levada ao STF repousava sobre a expressão “para a acusação”, contida na primeira parte do art. 112, inciso I, do CP, ao se referir ao marco inicial para deflagração cômputo do prazo da PPE.
Como apontado acima, o STF, em outra oportunidade, rechaçou o início da execução da pena fundamentada em um título executivo não definitivo, ou seja, não transitado em julgado, em atenção à dicção do art. 5º, inciso LVII, da CF/88, superando interpretação outrora forjada sob orientação contrária, de que o mero esgotamento das instâncias ordinárias não colocaria a presunção de inocência em risco, a permitir a famigerada “execução provisória da pena”.
O giro hermenêutico implementado no julgamento das ADC 43, 44 e 54, conduziu à defesa da tese do condicionamento do início da PPE ao trânsito em julgado para ambas as partes (e não apenas para a acusação, como constava da literalidade do art. 112, inciso I, primeira parte), em sintonia com o princípio da presunção de inocência, replicado no art. 8º, n. 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos e art. 14, §2º, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966. De todo modo, a sentença condenatória transitada em julgado continuaria a ser compreendida, amiúde, como requisito para a efetivação da “intencionalidade” do Estado de levar ao plano concreto o conteúdo normativo-punitivo da sentença.
É indubitável que, havendo a possibilidade da acusação recorrer da sentença, não há inércia do Estado e, portanto, não se fala de prescrição. Como apontado pelo relator, Min. Dias Toffoli, em seu voto, “a constatação da possibilidade de exercício da pretensão é, em verdade, da essência do instituto, da condição de seu nascimento” (STF, 2023).
Por outro lado, a inércia somente é cogitável diante do trânsito em julgado (para acusação e para a defesa) da sentença, quando se mobiliza o início do prazo prescricional em desfavor do Estado inoperante, negligente com o dever-poder de deflagrar tempestivamente a execução da pena fixada no título condenatório.
Como antecipado acima, o problema de fundo detectado com a permanência da expressão “para a acusação” no art. 112, inciso I, primeira parte, do CP, é que, além de opor-se frontalmente à orientação jurisprudencial substanciada na vedação à “execução provisória da pena”, em manifesta contradição com a garantia constitucional de presunção de inocência, evidencia uma contradição interna dramática: a despeito do Estado não ter quedado inerte, somente aguardando a tramitação de um recurso defensivo, não poderá deflagrar o processo executivo diante de um título (ainda) inexequível (segundo a recente orientação jurisprudencial do STF); por outro lado, já estará transcorrendo o prazo da PPE em desfavor do Estado, que, repita-se, não estará inerte, submetendo-se a execução da pena a um fato externo incontrolável.
Caso fosse mantida a expressão “para a acusação”, como sinalizado no voto citado alhures, poderia haver, no plano prático, um estímulo ao manejo de recursos impeditivos ao trânsito em julgado pela acusação, no intuito estratégico de “postergar, artificialmente, para o mais próximo possível do verdadeiro marco inicial, o início da fluência de seu prazo [prescricional] […]” (STF, 2023). Em contrapartida, como em uma espécie de “corrida”, não contra o tempo, mas em favor dele, a defesa poderia fazer o mesmo, abusando da recorribilidade de decisões com o propósito procrastinatório de conduzir o caso à prescrição.
Por fim, o STF fez a opção de modular os efeitos da Tese 788, no sentido de possibilitar sua aplicação somente aos casos em que o trânsito em julgado ocorreu após 11/11/2020, data de julgamentos das ADC 43, 44 e 54. Com isso, quem, cuja pena foi declarada extinta pela PPE, ou com sentença condenatória transitada em julgado para a acusação até 11/11/2020, foi beneficiado pela não aplicação da Tese 788, entretanto aqueles condenados cuja sentença transitou em julgado para a acusação após 11/11/2020 foi alcançado pelos efeitos dela.
Notas
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Expressamente, a CF/88 prevê dois casos de imprescritibilidade, a saber: prática de racismo (art. 5º, inciso XLII) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, assim definidos na Lei de Segurança Nacional (art. 5º, inciso XLIV).
Referências
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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 18 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016;
SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal. vol. 1: parte geral [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019;
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 848107. Relator: Ministro Dias Toffoli, Brasília, 3/7/2023. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, DJe 4/8/2023. Disponível em: link. Acesso em: 23 nov. 2023.