Como pacientes são tratados sem transfusão de sangue? E quais as consequências médicas e jurídicas? Entenda o programa de gerenciamento de sangue do paciente (PBM)

Como pacientes são tratados sem transfusão de sangue? E quais as consequências médicas e jurídicas? Entenda o programa de gerenciamento de sangue do paciente (PBM)

saúde

O QUE É “PBM”?

O termo Programa de Gerenciamento de Sangue do Paciente (sigla em inglês “PBM”), foi utilizado em 2005 pelo hematologista australiano James Isbister. O mesmo percebeu que deveria ocorrer uma mudança no foco da medicina transfusional. Assim, o PBM é um programa interdisciplinar que objetiva reduzir o uso de sangue e melhorar a qualidade do tratamento médico fornecido aos pacientes.1

O PBM utiliza vários procedimentos e medicamentos, os quais também atendem ao desejo de pacientes que não desejam realizar transfusão de sangue, seja por motivos sanitários e/ou religiosos. A aplicação do PBM nos hospitais é uma questão de saúde pública, conforme será abordado no próximo tópico.

Por que este assunto é importante?

Preocupada com os riscos relacionados as transfusões de sangue, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou fortemente a adoção do PBM nos hospitais.2 No “FórumGlobal da OMS Para Segurança do Sangue” realizado nos dias 14 e 15 de março de 2021, a temática discutida foi a implementação de técnicas de “Gerenciamento de Sangue do Paciente (PBM)” nas instituições de saúde.

Outra questão abordada pela OMS é o fato de que situações de doenças e calamidades públicas afetam diretamente os estoques de sangue. Estudos também têm indicado uma relação direta entre o envelhecimento da população mundial e a crescente necessidade de estoques de sangue. Assim, para a sustentabilidade do sistema, tem se buscado a utilização de fármacos e estratégias para reduzir o uso de transfusões. O PBM abre um interessante campo de pesquisas, pois os procedimentos são econômicos, seguros para os pacientes, proporciona tecnologia de ponta e amplia o conhecimento técnico-científico dos profissionais de saúde.3

Aspectos Médicos: quais os benefícios do PBM?

O PBM tem fundamento cientifico e já vem sendo aplicado em diversos hospitais ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Estudos de revisão com metanálise confirmam a eficácia do PBM:

Uma revisão sistemática com metanálise, contemplando 17 estudos observacionais em 235.779 pacientes, concluiu que o uso do PBM está associado a uma redução das transfusões de sangue, do tempo de internação hospitalar, das complicações como insuficiência renal aguda, infecção, eventos tromboembólicos, e da mortalidade.4

Após analisar 3.004 pacientes, uma equipe médica publicou que o risco de óbito está diretamente relacionado ao número de unidades de sangue transfundidas após a cirurgia cardíaca. Assim, foi constatado que quanto mais sangue é transfundido, maior é o risco de óbito no período pós-operatório.5  A médica Ludhmila Abraão Hajjar também chegou a mesma conclusão em um estudo envolvendo 512 pacientes. Ela colocou a prova a recomendação do médico americano John Lundy de 1942, o qual propôs como limite para a transfusão de sangue a margemde 10 g/dl de hemoglobina no período da II Guerra Mundial. A pesquisa foi feita no Instituto do Coração(InCor), emSão Paulo (SP). Hajjar utilizou doentes graves, comperfis semelhantes, submetidos a cirurgias cardíacas.

Hajjar dividiu o grupo entre os que receberam sangue no patamar de 10 g/dl de hemoglobina, os que foram transfundidos quando houve queda para 7 g/dl e os que não receberam transfusão. Após essa divisão, fez duas comparações: (1) entre pacientes que receberam mais sangue emrelação aos pacientes que receberam menos sangue; (2) entre pacientes que receberam sangue em relação aos pacientes que não receberamsangue. O resultado da pesquisa demonstrou que na primeira comparação os pacientes que receberam menos sangue se recuperaram tão bem quanto os que receberam mais sangue. E o mais interessante é que na segunda comparação (pacientes que receberam sangue e os que não receberam), Hajjar constatou que houve mais benefícios aos que não foram transfundidos, pois cada bolsa de sangue aplicada aumenta em 20% a taxa de mortalidade e de complicações clínicas.6

Outro estudo relevante analisou 3.010 pacientes separando-os em transfundidos e não transfundidos em cirurgias de revascularização de miocárdio. Os pacientes transfundidos ainda foram divididos em seis grupos conforme receberam uma, duas, três, quatro, cinco e seis ou mais unidades de sangue. Foi analisado após um ano da cirurgia o risco de mortalidade em cada grupo. O estudo apontou que a taxa de mortalidade no grupo de pacientes que receberam transfusão de sangue no primeiro ano após a cirurgia foi de 11,2% (212 óbitos), contra apenas 3,3% (37 óbitos) no grupo de pacientes que não foram transfundidos. Aqui, também se confirmou que o risco de mortalidade está diretamente relacionado ao número de unidades transfundidas, isto é, quanto mais sangue transfundido, maior é o risco de mortalidade no pós-operatório.7

Aspectos Jurídicos: quais as questões éticas?

A Bioética e o Biodireito garantem ao paciente o direito de escolheram o tratamento médico a ser administrado em seu corpo. Isto está de acordo com os princípios da “Autonomia do Paciente” e do “Consentimento Informado”, os quais decorrem do princípio constitucional do “Respeito à Dignidade da Pessoa Humana” (art. 1º, III, CF). A autodeterminação corporal e a liberdade de eleição de tratamento médico são direitos humanos fundamentais.

No entanto, no Brasil ainda há uma prática medicinal paternalista, na qual muitas vezes o profissional exerce domínio sobre o paciente e tenta impor um tratamento ou procedimento. No que diz respeito às transfusões de sangue, não raro há uma tendência de se exagerar o quadro clínico do paciente, alegar que o sangue é a única perspectiva de sobrevivência, ignorar as vantagens de se evitar as transfusões e retratar o paciente como um fanático religioso. O que o profissional da área jurídica pode fazer em tais casos? Seguem abaixo algumas sugestões:

* No caso de magistrados (as): Diante de uma demanda que solicita a autorização para administrar uma transfusão de sangue contra a vontade do paciente, o juiz tem poder de realizar “inspeção judicial” (art. 481, CPC). Isto significa que o mesmo pode se dirigir ao hospital e conversar com o paciente, tanto para averiguar a realidade dos fatos, como constatar possíveis procedimentos médicos do PBM que podem ser aplicados. Algo que seria interessante levar em consideração é que a autorização para realizar a transfusão sem dar oportunidade de o paciente (ou representante legal) se manifestar, é uma decisão irreversível e com base na versão unilateral dos fatos.

 * No caso de promotores (as): Pode ocorrer de uma pessoa solicitar que o promotor ingresse com uma medida judicial, para impor uma transfusão de sangue contra a vontade de um paciente. Neste caso, o promotor pode pedir a quem está solicitando a referida medida judicial, o contato do paciente para conversar diretamente com ele. Como membro do Ministério Público e fiscal jurídico, não há nada que impeça o promotor de se dirigir ao hospital para saber a realidade dos fatos. Na realidade, o mesmo pode descobrir que, ao invés de ingressar com uma demanda contra o paciente para lhe impor uma transfusão, talvez seria o caso de ingressar com uma demanda para garantir o respeito a autonomia e a dignidade do paciente, bem como o acesso a um tratamento médico sem sangue.

 * No caso de delegados (as) de polícia: Caso alguém deseje realizar um “Termo de Ocorrência” ou solicite força policial para realizar uma transfusão de sangue contra a vontade do paciente, o delegado pode raciocinar nos seguintes fatores: (I) a alegação de que a transfusão é o único meio de salvar a vida do paciente é unilateral; (II) a violação do corpo do paciente por meio de força policial pode se caracterizar como abuso de autoridade e (III) o delegado de polícia tem o poder de realizar a verificação, bem como procedimentos correlatos de polícia judiciária, referentes às situações supostamente tipificadas como ilícitos penais, que são trazidas ao seu conhecimento. Assim, o delegado de polícia também pode se deslocar ao hospital, conversar com o paciente e tomar ciência da realidade dos fatos. Ao verificar que a autonomia e a dignidade do paciente estão sendo violadas, o delegado pode inclusive realizar um “Termo de Ocorrência” visando garantir o respeito a liberdade pessoal do paciente, narrando o que de fato foi constatado.

Para todos os profissionais – ao conversar com o paciente, seria interessante levar em consideração os seguintes detalhes:

1 – provavelmente o paciente já foi submetido a terrível pressão psicológica para receber transfusão de sangue. No caso de religiosos, muitas vezes ocorre humilhação, inclusive na forma de sátira e zombaria em relação a sua religião. Assim, é preciso muita sensibilidade, pois a chegada de uma autoridade judicial ou policial poderá deixa-lo assustado, talvez pensando que você está no local para coagi-lo a receber uma transfusão de sangue. Como sugestão, seria interessante ingressar no quarto com alguém de confiança do paciente.

2 – No caso de pacientes Testemunhas de Jeová, a religião conta com uma rede de apoio aos seus pacientes chamada “COLIH” (Comissão de Ligação com Hospitais). Os voluntários que trabalham nesta rede recebem treinamento e estão preparados para conversar com autoridades judiciais e policiais, bem como fornecer informações sobre o histórico do paciente e apresentar materiais sobre os procedimentos do PBM que podem ser utilizados. Seria interessante entrar em contato com um representante da COLIH.

Por fim, para obter mais informações sobre o PBM, os links dos sites que seguem abaixo são muito úteis: BLOODLESS e SABM

 

Referências

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1. FRANCHINI, MASSIMO et. al. Gerenciamento do sangue do paciente: uma abordagem revolucionária para a medicina de transfusão, Revista Blood Transfusion (Transfusione di Sangre – Transfusão de Sangue), Maio de 2019, doi: 10.2450 / 2019.0109-19, v. 17, Milão, Itália.

2. BLOODLESS. Recomendações OMS 2021, disponível em: link.

3. LEMOS, Izabel Cristina Santiago et. al. Técnicas Alternativas de Gerenciamento e Conservação de Sangue, p.89, Revista UNICIÊNCIAS, v.22, nº 2, p.85-91, Cuiabá (MT), 2018.

4. PEDROSO, JCM, Santos AA, Santos, WSL, Araújo, RS, Rabello, G. de CM, & Ferreira, LM (2020). PBM de gerenciamento de sangue do paciente: uma maneira eficaz, segura, econômica e baseada em evidências de fornecer tratamento médico diante da escassez de bolsas de sangue causada pela pandemia de COVID-19 Em SciELO Preprints . https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.291

5. SANTOS, Antônio Alceu dos. CCP é alternativa segura e eficaz à medicina Transfusional, p.16, Revista Foco Hospitalar, p. 16-18, Ano 3, n. 7,2020.

6. PORTAL G1. Hemoam registra queda de 50% no estoque de sangue nesta semana, publicado em 29/12/2021, as 10:20hs, disponível em: link.

7. SANTOS, Antônio Alceu dos, et. al. Risco de mortalidade é dose-dependente do número de unidadesde concentrado de hemáciastransfundidas apóscirurgia de revascularização miocárdica. p.516, Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, v.28, n. 4, ps. 509-517, São Paulo, SP, 2013.

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