Nesta ocasião, pretende-se apresentar, resumidamente, a Resolução n. 487, de 15 de fevereiro de 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 27 de fevereiro do ano passado. A resolução institui a política antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. Neste espaço, objetiva-se, também, analisar aspectos importantes da Resolução CNJ n. 487/2023 aplicáveis em intercorrências durante a audiência de custódia.
O engajamento da sociedade civil organizada, de profissionais da saúde e de pacientes em defesa de políticas públicas que superem de uma vez por todas a ideação hospitalocêntrica de tratamento de saúde mental a pessoas com deficiência contribuiu para a publicação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Resolução n. 487/2023 (BRASIL, 2023), que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.
Apesar das severas críticas que vem recebendo de alguns segmentos da classe médica e do parlamento1 , a resolução apresenta relevantes avanços em termos de efetividade normativa com a atração, ao âmbito do Judiciário, de serviços e recursos de atenção à saúde mental a favor de pessoas com discapacidades que realizaram atos correspondentes a ilícitos penais.
A despeito da vigência de mais de vinte anos da Lei n. 10.216/2001 (Brasil, 2001), referência de implantação cogente no país de um modelo assistencial reorientado à proteção de garantias fundamentais desses indivíduos, na prática, infelizmente, são vistas situações de negação à dignidade desses cidadãos e de despudorada negação à vigência do cabedal temático de normas de proteção de direitos humanos, a exemplo da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (e seu Protocolo Facultativo, de 2002) e da própria lei federal citada.
Com razão, Santos(2023) comenta:
O esforço para o fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos no Brasil, com a reorientação dos pacientes para tratamento pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), possibilitada a internação apenas mediante necessidade clínica, em leitos de Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) ou Hospitais Gerais, é uma luta incansável de profissionais de saúde, organizações da sociedade civil e usuários dos serviços de atenção à saúde mental.
Ocorre que a política nacional de atenção à saúde mental, passados mais de 20 anos da edição da lei 10.216/2001, não alcançou a internação aplicada a título de medida de segurança penal, dada a resistência de setores do Poder Judiciário, de operadores do direito e de parte da Administração Pública em darem cumprimento à lei.
Com iniciativas exemplificativas de exceção a essa tendência, como o Programa de Atenção ao Louco Infrator (PAILI), em Goiás (MPGO, 2013), e o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), em Minas Gerais (TJMG, 2020), abrem-se espaços criativos para soluções orientadas ao reconhecimento de autores de ilícitos penais, qualificáveis como inimputáveis, como verdadeiros sujeitos de direitos e participantes ativos e propositivos de seu projeto terapêutico singular (PTS).
Não obstante, não escapa de uma análise criminológica mais aguçada, o problemático entrelaçamento entre os saberes jurídico-penal e médico no programa de responsabilização a inimputáveis, como pontua Foucault:
[…] a sociedade vai responder à criminalidade de dois modos, ou antes, vai propor uma resposta homogênea com dois polos: um expiatório, outro terapêutico. Mas esses dois polos são os dois polos de uma rede contínua de instituições, que têm como função, no fundo, responder a quê? Não à doença exatamente, é claro, porque, se só se tratasse da doença, teríamos instituições propriamente terapêuticas; tampouco respondem exatamente ao crime, porque nesse caso bastariam instituições punitivas. Na verdade, todo esse continuum, que tem seu polo terapêutico e seu polo judiciário, toda essa miscibilidade responde a quê? Ao perigo, ora essa (Foucault, 2001, p. 42-43).
Voltando à Resolução CNJ n. 487/2023, esta adveio em fevereiro de 2023 sobre o argumento de que não inovou no ordenamento jurídico, tendo apenas cristalizado, de forma sistemática, respostas estatais de conexão dos equipamentos de saúde mental ao aparelho estatal persecutor. Dessa maneira, não atuou o CNJ de forma a subtrair do debate político-legislativo o tema central desenvolvido.
Convém destacar que a resolução também é fruto de um triste episódio que envolveu Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental, submetido a condições desumanas e degradantes da sua hospitalização enquanto esteve em tratamento psiquiátrico em estabelecimento privado conveniado ao Sistema Único de Saúde, resultando em sua morte em 1999. O atentado à vida e a integridade de Ximenes Lopes foi levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual condenou, em 2006, o Brasil pela violação ao direito à vida e à integridade pessoal desse paciente, bem como assinalou a falta de investigação e a impunidade no decorrer das apurações (Corte IDH, 2006).
De todo modo, a Resolução CNJ 487/2023 alerta para a responsabilidade ética estatal, em multiníveis, ao adotar padrões internacionais de proteção a pessoas com discapacidades, também aplicáveis a pessoas acometidas de transtorno mental ou qualquer outra deficiência psicossocial que tenham cometido ilícitos penais.
Em linhas gerais, a resolução obriga a articulação interinstitucional permanente do Poder Judiciário com as redes de atenção à saúde e socioassistenciais, em todas as fases do procedimento penal, mediante elaboração de PTS; a adoção de política antimanicomial na execução de medida de segurança; o direito à saúde integral, privilegiando-se o cuidado em ambiente terapêutico em estabelecimentos de saúde de caráter não asilar, pelos meios menos invasivos possíveis, com vedação de métodos de contenção física, mecânica ou farmacológica desproporcional ou prolongada, excessiva medicalização, impedimento de acesso a tratamento ou medicação, isolamento compulsório, alojamento em ambiente impróprio e eletroconvulsoterapia em desacordo com os protocolos médicos e as normativas de direitos humanos; respeito à territorialidade dos serviços e ao tratamento no meio social em que vive a pessoa, visando sempre a manutenção dos laços familiares e comunitários (art. 3º, incisos V, VII, IX e XII).
Já na porta de entrada do sistema judicial criminal, ou seja, por ocasião da audiência de custódia, a pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial identificados por equipe multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, deverá ser encaminhada ao atendimento voluntário na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) voltado à proteção social em políticas e programas adequados, a partir de fluxos pré-estabelecidos com a rede, nos termos da Resolução CNJ n. 213/2015 (que regulamenta a audiência de custódia) e do Modelo Orientador elaborado pelo CNJ (art. 4º, caput). De todo modo, a autoridade judicial não prescinde de observância ao Manual de Algemas e Outros Instrumentos de Contenção em Audiências Judiciais2 , de forma que, quando da análise da legalidade da prisão em flagrante, deverá avaliar se o uso de algemas ou instrumentos de contenção física atendeu aos princípios da proporcionalidade e não discriminação, considerada a condição de saúde mental da pessoa, ou se ocorreu de maneira a causar deliberadamente dores ou lesões desnecessárias, o que poderia configurar hipótese de tortura ou maus tratos (art. 6º).
Nessa janela de oportunidade, a autoridade judicial deve estar alinhado aos fluxos de encaminhamentos e interlocuções com os equipamentos de saúde mental existentes, em diálogo constante, durante todas as fases da persecução criminal. Essa posição ativa de garantidor da integridade do custodiado e de oferta ao imediato tratamento médico adequado, segundo o modelo antimanicomial, é uma exigência doravante compartilhada por todos os profissionais do Direito presentes na audiência de custódia, seja defensor público, seja promotor, seja advogado. O dever funcional de garantir a proteção de direitos humanos alcança todos os atores institucionais, indistintamente do cargo ocupante.
Assim como a interlocução constante com os equipamentos de saúde mental, a desburocratização e a brevidade da intervenção judicial também são princípios válidos nessa janela, vez que a resolução prevê que a análise sobre a imputabilidade da pessoa, quando necessária, poderá ser qualificada com requisição de informações sobre o atendimento e o tratamento dispensado nos serviços aos quais a pessoa esteja vinculada, respeitado o sigilo de informações pessoais e médicas (art. 10, caput). Reafirmando jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a resolução preconiza que o incidente de insanidade mental que subsidiará a autoridade judicial na decisão sobre a culpabilidade ou não do réu é prova pericial constituída em favor da defesa, não sendo possível determiná-la compulsoriamente em caso de oposição desta (art. 10, parágrafo único).
Outrossim, é direito do custodiado sobre o qual recai suspeita de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial ter em sua companhia, durante a audiência de custódia, pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim de assisti-la durante o ato judicial (art. .4º, parágrafo único). A nosso ver, a presença do defensor público ou advogado que não possui essas singularidades, não supre essa garantia, capaz de reduzir, pontualmente, o sofrimento psíquico do custodiado em momento de acentuada fragilidade e constrangimento.
Ademais, percebendo a autoridade judicial, com apoio da equipe multidisciplinar e após ouvidos o Ministério Público e a defesa, que o custodiado está em situação de crise em saúde mental e sem condições de participar do ato, solicitará tentativas de manejo de crise pela equipe qualificada, com o imediato acionamento de equipe de saúde da RAPS para a tomada de medidas emergenciais e referenciamento do paciente ao serviço de saúde, além da realização de ações de escuta, compreensão da condição pessoal, produção imediata de consensos possíveis, mediação entre a pessoa e as demais presentes no ambiente e a restauração do diálogo, bem como, o quanto antes, a identificação dos fatores que possivelmente desencadearam a crise (art. 5º, caput).
No caso de impossibilidade de realização da audiência de custódia, a autoridade judicial certificará sua dispensa, por meio de termo no qual constará: a) a determinação para elaboração de relatório médico acompanhado, se for o caso, de informes dos demais profissionais de saúde do estabelecimento ao qual a pessoa presa em flagrante for encaminhada, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou maus tratos, a ser remetido ao juízo em 24 (vinte e quatro) horas; b) a requisição imediata de informações às secretarias municipal ou estadual de saúde sobre a atual condição da pessoa e indicação de acompanhamento em saúde mais adequado, que poderá compor o PTS, com descrição de eventual tratamento que esteja em curso, a serem prestadas em 48 (quarenta e oito) horas, com a finalidade de subsidiar a tomada de decisão judicial (art. 5º, §2º).
E caso a pessoa não receba alta médica para ser apresentada em juízo no prazo legal, a autoridade judicial poderá realizar o ato no local em que a pessoa se encontrar; nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá providenciar a condução para a realização da audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação (art. 5º, §3º).
Se não for caso de relaxamento de prisão, em se assegurando sua legalidade, a autoridade judicial passará a avaliar a necessidade e a adequação de medidas cautelares, evitando medida que dificulte o acesso ou a continuidade do melhor tratamento disponível, ou que apresente exigências incompatíveis ou de difícil cumprimento diante do quadro de saúde apresentado; assim como medidas concomitantes que se revelem incompatíveis com a rotina de acompanhamento na rede de saúde (arts. 7º, incisos I e II).
A monitoração eletrônica, espécie de medida cautelar diversa da prisão provisória, prevista no art. 319, inciso IX, do Código de Processo Penal, será preterida para pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial, sem que isso enseje a aplicação de medidas que obstem o tratamento em liberdade (art. 7º, §1º).
Destaca-se que, nos casos em que a autoridade judicial substituir a prisão preventiva pela domiciliar, nos termos do art. 318 do Código de Processo Penal, será garantida a possibilidade de tratamento adequado na RAPS e o exercício de outras atividades que reforcem a autonomia da pessoa, como trabalho e educação, assim como a atenção para interseccionalidades de gênero, raça, etnia, situação de rua, cuidadores de crianças e adolescentes, idosos, indígenas etc. e a evitação de medidas que ampliem o quadro de vulnerabilidade social (art. 7º, §2º).
Por fim, a resolução é aplicada aos adolescentes com transtorno ou sofrimento mental apreendidos, processados por cometimento de ato infracional ou em cumprimento de medida socioeducativa, no que couber, enquanto não for elaborado ato normativo próprio, considerando-se a condição de pessoa em desenvolvimento, o princípio da prioridade absoluta e as devidas adaptações, conforme previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 22).
Notas
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1. Destaca-se que um dos pontos de controvérsia é a determinação de interdição total dos hospitais de custódia e tratamento ambulatorial (HCTP) e alas psiquiátricas até maio de 2024. Noticia-se a tramitação junto à Câmara dos Deputados, do Projeto de Decreto Legislativo 81/2023, de autoria do Deputado Federal Kim Kataguiri (União Brasil/SP), com o fim de sustar a aplicação da Resolução CNJ n. 487, por ter, em tese, essa resolução extrapolado “seu poder regulamentar invadindo a seara do Poder Legislativo ao inovar na ordem jurídica estabelecendo conceitos, princípios, diretrizes, objetivos, que deverão ser observados pelo Poder Judiciário na execução da Política antimanicomial” (Brasil, 2023).
2. Este material encontra-se disponível no sítio eletrônico do CNJ em: site (Brasil, 2020).
Referências
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Presidente da ABP participa de audiência pública sobre resolução do CNJ. 2023. Disponível em: site. Acesso em 8 fev. 2024.
_______. Nota de Repúdio, de 21 de março de 2023. Disponível em: site. Acesso em 8 fev. 2024;
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Decreto Legislativo n. 81/2023. Brasília. Disponível em: site. Acesso em: 11 fev. 2024;
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução n. 487, de 15 de fevereiro de 2023. Brasília. Disponível em: site. Acesso em: 5 fev. 2024;
_______. Manual sobre algemas e outros instrumentos de contenção em audiências judiciais : Orientações práticas para implementação da Súmula vinculante n. 11 do STF pela magistratura e tribunais. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Omega Research Foundation. Coord. Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi … [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. Disponível em: site. Acesso em 10 fev. 2024;
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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. CFM apoia manifestação contra fechamento de Hospitais de Custódia e Tratamentos Psiquiátricos. 2023. Disponível em: site. Acesso em 8 fev. 2024;
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FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
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SANTOS, Juarez Cirino dos. A lei antimanicomial: um modelo revolucionário de saúde mental. Boletim IBCCrim, n. 31, n. 373, dezembro de 2023, p. 5-9. Disponível em: site. Acesso em: 5 fev. 2024;
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