As constantes táticas de humilhação pública dos corpos preanunciados como dissidentes, a gestão dessas presenças por meio do interesse bélico das normas de gênero, de sexualidade, de raça e demais sistemas valorativos de poder e, por fim, os discursos que restringem a possibilidade da existência de sujeitos marcados à distância dos pactos políticos entre os semelhantes, revelam que o corpo é, na verdade, um pressuposto politicamente produzido e que a sua existência [ou não] também é costurada por parâmetros tecnopolíticos.
Ao percebermos a constante tentativa de subjugar corpos dissidentes, de asfixiar a sua presença e de designar a sua possibilidade nos limites das normas, compreendemos que esses pressupostos são, de um lado, forjados por meio de dispositivos políticos, morais, discursivos e ideológicos e, de outro, coordenados pela dinâmica hostil e colonial da comparação. É importante ressaltar que as práticas discriminatórias se beneficiam da comparação como um dos mais sofisticados instrumentos de pulverização das humanidades. Dessa forma, os sistemas discriminatórios criam e organizam a realidade através de seus critérios normativos e, a partir deles articulam e publicizam o que deve ser compreendido como a anormalidade. A norma e a anormalidade são, portanto, produtos das relações de poder e designam o quanto os interesses políticos são retroalimentados pelas técnicas de gestão dos corpos. Assim, é possível identificar que o corpo é designado como humano ou inumano a depender de sua localização.
Segundo Louro (2018), é no interior das relações de poder que os corpos ganham significado. Sendo assim, as classificações, marcações e hierarquias indicam que o sentido do corpo está diretamente vinculado às relações sociais, culturais e políticas que, ao designarem os parâmetros de humanidade e desumanidade, permitem que ele seja reconhecido como humano ou não. É importante pensar que quando tratarmos dos corpos, estamos necessariamente falando de política e, mais, de como os nossos olhares são enviesados pelas normas culturais que significam a legitimidade de uma vida. Ocorre que esses olhares enviesados, viciados em compreender de forma restritiva a humanidade, precarizam vidas, acirram dinâmicas de violência e impedem que, de fato, avancemos na destituição de uma realidade política que se materializa como uma máquina de moer gente.
Referências
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LOURO, Guacira. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.