O monitoramento eletrônico e o exame criminológico na Lei n. 14.843/2024

O monitoramento eletrônico e o exame criminológico na Lei n. 14.843/2024

monitoramento tornozeleira eletrônica

No mês anterior, os desdobramentos inovadores da Lei n. 14.843/2024 em matéria de restrições à concessão da saída temporária foram rapidamente explorados, deixando-se para esta oportunidade a análise das repercussões em sede de monitoração eletrônica e de suas implicações na exigência de exame criminológico para progressão de regime.

 

A Lei n. 14.843/2024, atendendo aos reclamos de um discurso punitivismo pouco claro em termos de efetividade na redução da violência urbana, promoveu, recentemente, alterações na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984) de modo a provocar clivagens significativas no campo da prática.

O regime de monitoramento eletrônico previsto nos arts. 146-B a 146-C, da Lei de Execução Penal (LEP), foi um dos tópicos que sofreu alterações legislativas através da Lei n. 14.843/2024. O monitoramento eletrônico consiste em um recurso de vigilância remota implementado por meio da instalação, no corpo físico do condenado, de um aparelho que permite o rastreio à distância e o controle por software da mobilidade desse indivíduo pela prefixação de pontos de inclusão e exclusão, normalmente por geolocalização.

Wermuth e Chini (2021) explicam que a tecnologia telemática empregada para o controle pelo monitoramento eletrônico, desde sua origem, aspirava à estigmatização de indivíduos considerados perigosos. Segundo esses autores, em citação a Gable (2014):

O sistema de vigilância telemática que começou a ser pesquisado e desenvolvido na década de 1960 passou muito tempo ignorado até que, em 1977, um juiz distrital do estado do Arizona, chamado Jack L. Love – que buscava uma solução tecnológica para os problemas da superlotação carcerária e das tentativas de fuga de prisioneiros –, viu um artigo no jornal que descrevia um dispositivo que era utilizado para medir a temperatura do gado, implantando-se o mesmo abaixo da pele do animal. A partir dessa percepção, o juiz também recordou de uma biblioteca em que um sino tocava se alguém passasse pelo dispositivo de triagem com um livro não verificado, além de encontrar em seus arquivos uma série dos desenhos do Homem-Aranha que havia aparecido em uma edição do Albuquerque Journal daquele ano (Gable, 2014) (Wermuth e Chini; 2021).

Dados apresentados no Relatório de Informações Penais (RELIPEN), divulgado pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública através de sua Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), em referência ao período compreendido entre julho e dezembro daquele ano, apontam que 100.755 pessoas são monitoradas eletronicamente em prisão domiciliar, das quais 89.903 são do sexo masculino e 10.852, do sexo feminino (Governo Federal, 2024).

Trata-se de um contingente significativo de pessoas cuja liberdade é sacrificada por um método contraintuitivo à prisão convencional, aparentemente mais flexível à locomoção, mas que embaça o anelo genuíno por trás da retórica de diminuição dos índices de encarceramento (patrocinados pelo Estado punitivista) e de fomento à harmonização das instâncias de controle ao progresso tecnológico. Na prática, não é incomum a própria defesa técnica sugestionar o monitoramento eletrônico como uma alternativa mais “suave” ao cárcere e menos dramática ao cliente, sem aprofundar criticamente as finalidades, o rendimento socialmente mensurável e os impactos desse recurso na órbita de vida desse sujeito.

De outro lado, também não é incomum encontrar fundamentações judiciais que amenizam os efeitos da monitoração eletrônica, considerando-a como uma medida menos incisiva que a prisão e complementar a outras medidas de controle; ou que simplesmente trata-se de “meio eficaz de fiscalização do adimplemento das condições impostas e viabiliza o acompanhamento do deslocamento do sentenciado, sem olvidar que possibilita o cumprimento da reprimenda na residência, de forma a diminuir o excesso de lotação do estabelecimento penal (sic)” (Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, 2023). Chega-se a encontrar, em acórdão, a justificativa genérica de que “o monitoramento eletrônico é o meio mais eficaz de fiscalização do cumprimento da pena do sentenciado no regime aberto. Assim, deve ser mantido o monitoramento eletrônico quando inexiste justificativa idônea que demonstre a real necessidade da retirada da tornozeleira eletrônica ou de sua flexibilização” (Mato Grosso do Sul, 2023).

Fica difícil não inferir que a  inversão de sinais que recaem sobre as fronteiras do estado de não monitorado para o de monitorado consolidou-se com a práxis, a ponto de abrir vãos permissivos a discursos de agigantamento e disseminação dos meios de controle. O monitoramento eletrônico deixa de ser uma alternativa de fato à prisão, com oferta de vantagens ressocializantes ao sujeito, para servir aos propósitos do aparato estatal como elemento novo, um acréscimo ao amplo universo de controle já existente.

A fiscalização por monitoramento eletrônico no regime aberto, que, a princípio, seria uma possível condição especial na execução penal, justificável conforme os contornos fáticos peculiares (mesmo na atual redação do art. 115, caput, da LEP), passa, à vista de decisões do tipo acima em destaque, um adicional necessário ao ingresso a esse regime, sem maiores constrangimentos diante dos limiares normativos vigentes.

A monitoração eletrônica surge no Código de Processo Penal (CPP) com a Lei n. 12.403/2011, que alterou a redação do art. 319, para definir a monitoração eletrônica como uma medida cautelar alternativa à prisão (inciso IX), aplicável desde a fase de investigação preliminar (Brasil, 2011). Não é incomum a concomitância da prisão em caráter domiciliar em substituição à prisão preventiva com a imposição de monitoração eletrônica, sob o fundamento do art. 318-B, do CPP, em um arranjo de difícil adequação constitucional, que, ao fim, delega a quem é presumivelmente inocente o ônus financeiro, social e psicológico da autocarcereiragem.

Antes da Lei n. 12.403/2011, porém, a Lei n. 12.258/2010, restrita à execução penal, ampliou a margem de discricionariedade do juiz da execução ao conferir-lhe o poder de determinar a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado beneficiado pela saída temporária em regime semiaberto e quando determinasse prisão domiciliar (art. 146-B, incisos II e  IV, da LEP).

A Lei n. 14.843/2011 consolidou essas duas hipóteses e ainda ampliou o rol de hipóteses – para determinação, em sede de execução penal, de colocação de equipamento de monitoração eletrônica. Incluiu os incisos VI, VII e VII, do art. 146-B, da LEP, respectivamente, para permitir a medida quando aplicar pena privativa de liberdade a ser cumprida nos regimes aberto ou semiaberto, ou conceder progressão para tais regimes; ao aplicar pena restritiva de direitos que estabeleça limitação de frequência a lugares específicos; e quando conceder o livramento condicional (vide art. 132, § 2º, alínea “e”, da LEP), a revelar uma desproporcionalidade atentatória ao princípio da individualização da pena e de seu caráter ressocializador em comparação com as finalidades inerentes a essa benesse.

Chama atenção o fato de lá atrás, em 2010, com o advento da Lei n. 12.258/2010, muitos desses dispositivos requentados pela Lei n. 14.843/2024, haviam sido objeto de veto presidencial (mantido pelo Congresso Nacional), sob o seguinte argumento exposto na Mensagem de Veto n. 310/2010:

A adoção do monitoramento eletrônico no regime aberto, nas penas restritivas de direito, no livramento condicional e na suspensão condicional da pena contraria a sistemática de cumprimento de pena prevista no ordenamento jurídico brasileiro e, com isso, a necessária individualização, proporcionalidade e suficiência da execução penal. Ademais, o projeto aumenta os custos com a execução penal sem auxiliar no reajuste da população dos presídios, uma vez que não retira do cárcere quem lá não deveria estar e não impede o ingresso de quem não deva ser preso (Presidência da República, 2010).

Outro ponto que desperta interesse é o fato de, em 2024, diante do Projeto de Lei do que viria a ser a Lei Sargento PM Dias (Lei n. 14.843/2024), não houve irresignação por meio de veto presidencial quanto a dispositivos que ampliam o horizonte de possibilidades de imposição da monitoração eletrônica durante o cumprimento da pena (Presidência da República, 2024). Intui-se que o fundamento do veto em 2010 persiste atualmente, ainda mais com a conclusão do julgamento da ADPF 347, em que reconhecida pela Suprema Corte a violação massiva de direitos humanos da população carcerária desde o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional.

De outra sorte, essa tessitura regulatória fomenta a formulação de duas pontuais e centrais reflexões. A primeira aponta que essa ampliação de hipóteses ampliadas de aplicação de monitoração eletrônica pode ser interpretada como uma tendência de banalização do manuseio de uma medida que, em seus efeitos, é acentuadamente contundente à liberdade do cidadão processado ou do condenado, com pouca aderência no horizonte político criminal orientado pela prevenção delitiva (prevenção geral negativa) ou pela persuasão eficaz que reverbere na diminuição da reincidência (prevenção especial negativa), ou mesmo em seu direito de ser ressocializado ou de ter seu direito de não ter sua socialização reduzida.

A segunda, acoplada à primeira, é que a banalização da monitoração eletrônica pode ser uma tendência de substituição do cárcere tradicional por algo mais coerente com a hipervigilância que toca a sociedade neoliberal pós-contemporânea. A vigilância digital pelo Estado e as práticas de hacking governamental são um ponto sensível que vem merecendo a atenção do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial, pelas tensões irredutíveis com direitos e garantias fundamentais, tais como, a intimidade, a vida privada e a privacidade. Recentemente, diversos especialistas contribuíram para o debate em audiência pública presidida pelo STF, que foi instado a enfrentar o tema a partir do uso adequado de instrumentos disponíveis à investigação criminal, na ADPF 1143 (Supremo Tribunal Federal, 2024).

De toda forma, a vida social do indivíduo passa também a ser monitorada em franca invasão abusiva a seus espaços de preservação de sua identidade, o núcleo duro de sua subjetividade. Com razão Campello (2019) ao afirmar que “quando se teme em demasia o controle exacerbado exercido pelas novas tecnologias, podem ser temidos também os processos mediante os quais as novas tecnologias tendem a fugir ao controle”.

Quanto ao exame criminológico, este passa a ser imperativo ao apenado que pretender progredir de regime. A depender dos resultados dessa avaliação, da abonação da conduta pelo diretor do estabelecimento e em hipótese de não incidência de nenhuma das hipóteses legais de vedação, o apenado poderá ter direito à progressão do regime (art. 112, LEP). Até mesmo para ingresso no regime aberto, além de antecedentes favoráveis, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina, baixa periculosidade e senso de responsabilidade, os resultados do exame criminológicos também devem apontar para a adequação do apenado ao novo regime.

O exame criminológico é abordado inicialmente pelo art. 8º, da LEP. Conforme esse dispositivo, o condenado ou a condenada ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, deve obrigatoriamente submeter-se ao exame criminológico, para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução. A submissão do condenado ou da condenada ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semiaberto ao exame criminológico, por outro lado, é eventual. Para além de ser um recurso que subsidia a classificação técnica do apenado (segundo seus antecedentes e personalidade) e a elaboração de um programa individualizador da pena, o resultado (favorável) do exame criminológico, hoje, com as alterações da Lei n. 14.843/2024, configura, também, um requisito de admissibilidade à progressão de regime para o semiaberto e deste para o aberto, conforme art. 112, §1º, da LEP.

É a Comissão Técnica de Classificação (CTC) que realiza esse exame, existente em cada estabelecimento, devendo ser presidida pelo respectivo diretor e composta, no mínimo, por 2 (dois) chefes de serviço, 1 (um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um) assistente social, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade (art. 7º, da LEP). Nos demais casos, a CTC atuará junto ao Juízo da Execução e será integrada por fiscais do serviço social (art. 7º, parágrafo único, da LEP).

A restauração da obrigatoriedade do exame criminológico, mais de vinte anos após a dispensa de sua realização pela Lei n. 10.792/2003 como requisito inarredável para a progressão de regime promovida, é objeto de forte preocupação dentro do momento punitivo contemporâneo (Fassin, 2021) e que não está isenta de uma leitura mais crítica quanto aos impactos dessa opção legislativa no contexto de reconhecida decadência do sistema penitenciário2 .

A jurisprudência, antes do advento da Lei n. 14.843/2024, já preconizava que ao juiz da execução penal era facultado exigir o exame criminológico em casos de progressão de regime, segundo as peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada (Súmula 439, do Superior Tribunal de Justiça) e não apoiada na gravidade abstrata do delito e em fatos antigos1 . O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, ao editar a Súmula Vinculante n. 26, abriu a possibilidade de exigência do exame criminológico, em concomitância à avaliação do preenchimento (ou não) dos requisitos objetivos e subjetivos para a progressão de regime, à vista do reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), antes da redação a ele dada pela Lei n.11.464/2007.

Roig (2021, p. 362) adverte que a insistência na crença na suposta eficácia dos exames criminológicos favorece o desenvolvimento de uma execução penal atuarial, “baseada em pragmáticos prognósticos de risco (atuariais) e periculosidade sociais, com a profusão de guias metódicos que quantificam minuciosamente os dados pessoais e sociais do condenado, construindo a possibilidade de liberdade a partir de tais elementos”. Dificilmente a exigência peremptória do exame criminológico para a progressão de regime desencadeará algum tipo de saldo positivo ao enfrentamento de problemas sensíveis relativos à segurança pública.

Notas

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1 Vide: Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC n. 871.572/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 13/5/2024, DJe de 16/5/2024.

2. Por se tratar de imposições mais gravosas ao apenado, compreende-se que a obrigatoriedade do exame criminológico não alcança apenados que tenham cometido crimes antes da Lei n. 14.843/2024, em observância ao art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal.

 

Referências

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CAMPELLO, Ricardo Urquizas. O carcereiro de si mesmo. Tempo Social, São Paulo, Brasil, v. 31, n. 3, p. 81–97, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/161057. Acesso em: 10 ago. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Monitoração eletrônica criminal: evidências e leituras sobre a política no Brasil [recurso eletrônico]l. Conselho Nacional de Justiça … [et al.] ; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/diagnostico-politica-monitoracao-eletronica.pdf. Acesso em: 9 ago. 2024.

FASSIN, Didier. Punir – Uma paixão contemporânea. Tradução de André Bezamat. Ed. Âyiné: Belo Horizonte, 2021, p. 10.

GOVERNO FEDERAL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Relatório de Informações Penais. 15º ciclo SISDEPEN. 2º Semestre de 2023. Brasília, 2024. Disponível em: site. Acesso em: 7 ago. 2024.

MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Agravo de Execução Penal nº 1601911-68.2023.8.12.0000, Dourados, 1ª Câmara Criminal. Relator: Des. Jonas Hass Silva Júnior. Diário de Justiça. Campo Grande.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Mensagem de veto n. 310, de 15 de junho de 2010. Disponível em: site. Acesso em: 7 ago. 2024.

______. Mensagem de veto n. 144, de 11 de abril de 2024. Disponível em: site. Acesso em: 7 ago. 2024.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal. Teoria Crítica. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF debate limites e riscos de ferramentas de monitoramento secreto de dispositivos eletrônicos. Disponível em: site. Acesso em 7 ago. 2024.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; CHINI, Mariana. Monitoração eletrônica de pessoas em âmbito penal: considerações sobre o transcurso da tecnologia. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, [S. l.], v. 2, p. 1–18, 2022. DOI: 10.24220/2675-9160v2e2021a5790. Disponível em: site. Acesso em: 9 ago. 2024.

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