Em cada silêncio do corpo identifica-se a linha do sentido universal que à forma breve e transitiva imprime a solene marca dos deuses e do sonho. (ANDRADE, 1984)
Esse artigo tem como objetivo dissertar sobre o corpo enquanto um espaço de significações e de saberes. O homem vivencia o mundo e as coisas que, nele estão por intermédio do corpo enquanto uma dimensão expressiva e, nesse sentido o corpo é denominado como corpo próprio, corpo expressivo ou corpo fenomenal e, no dizer de Merleau-Ponty (1994), o corpo é um dos visíveis, que se vê a si mesmo, realizando a junção sujeito/objeto, que é um universo de significações.
A opção pela epigrafe do poema as contradições do corpo de autoria de Carlos Drummond de Andrade se deve ao fato dele retratar, com maestria, o corpo como ser de linguagem pois, é um corpo que mesmo no seu silêncio é compreendido como um nó de significações vivas que, traduz constantemente o estar do homem no mundo.
Pelas vias da corporeidade uma produção de saberes é instituída. A linguagem constituída pelo corpo próprio, pelo corpo fenomenal apresenta um estilo, é um local de inscrição de conhecimentos e significados que se traduz em intencionalidade.
O corpo próprio carrega uma intencionalidade possibilitando aduzir que, o corpo é para o homem um corpo vivido que, constrói história que guarda memória e tece relações que se desenrolam no espaço e no tempo. E, segundo Merlau-Ponty (1994), é no corpo-próprio que as alegrias, as tristezas e as dores são acolhidas, pois a história vivenciada pelo sujeito no decorrer de sua existência encontra-se registrada na memória corporal.
Apoiamos nossa memória em uma imensa “memória do mundo” que, segundo Merleau-Ponty funda seu ser de momento; portanto, a memória corporal guarda dores, histórias, pulsa amores presentes, antigos, anuncia as ruas pelas quais passamos, as cidades que visitamos, e tratamos as nossas histórias vivenciadas como resultados das relações tecidas entre corpo/mundo.
Ao guardar histórias e anunciar o sentido da existência, o corpo possibilita ao homem transitar entre o passado e o presente e, o futuro é o poder-ser enquanto projeto, pois ao projetar-se “cava no interior do mundo pleno no qual se desenrola o movimento concreto, uma zona de reflexão e de subjetividade, ele sobrepõe ao espaço físico, virtual ou humano”. (MERLEAU-PONTY, 1994, p.160). O corpo marca história, constrói história, porém lembrar de algo é recordar como o corpo vivenciou os momentos bons, os momentos ruins, as decepções bem como as tragédias.
Ademais, é o corpo que coloca em prática os desejos, intenções, habita o espaço, o tempo e, se projeta em um mundo moldado pelo contexto social e cultura, é um vetor semântico que evidencia como a relação com o mundo é construída; carrega expressões de sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, estabelece relação com a dor, com sofrimento, portanto, a existência é corporal. É por intermédio do corpo que percebemos o mundo, produzimos sentimentos e, nos relacionamos com a realidade a nossa volta.
O gesto é a linguagem silenciosa do corpo carregada de significações e sentidos que possibilita ao homem tecer relações, uma vez que ele é ofertado deliberadamente para um determinado espectador, e oferecido como um ato que possibilita uma interação entre sujeitos cuja comunicação acontece por intermédio da compreensão entre a intenção de quem faz o gesto e a de quem o percebe, porquanto ao gesticular, fala-se com o corpo. Para compreender um gesto não precisa se lembrar das situações vivenciadas ao executá-lo, pois não é por meio das lembranças que o gesto é executado, mas como um conjunto de significações e sentidos. Cita-se, uma passagem narrada por Merleau-Ponty (1994), quando dois amigos se encontram e um faz sinal para o outro se aproximar, a intenção de quem faz o sinal é chamar o outro, visto que o sinal é feito a partir de um gesto carregado de expressividade cuja linguagem silenciosa se encontra impregnada de um sentido compreendido por quem vê tal gesto.
O movimento traduz uma síntese entre o psíquico e o fisiológico, porquanto ao se colocar em movimento muitas informações são desveladas e, se mostram como um simples aceno de chegada ou partida, o corpo se movimenta em função da intencionalidade que o gesto propõe.
Pela presença intencional o corpo próprio é entendido como um espaço expressivo que, por intermédio do gesto, da linguagem encontra-se na ordem da comunicação e, ao apresentar categorias é percebido como uma obra de arte que se manifesta no mundo, através da linguagem não verbal, de gestos, as significações expressivas podem ser percebidas pelos diversos espectadores que admiram ou negam as características peculiares a cada corpo cuja significação é segundo Merleau-Ponty (1994), o estilo e o silêncio que dele emana.
O corpo próprio possibilita ao homem tecer relações com o mundo e, com outrem mas, o corpo como diria Carlos Drummond mesmo de forma silenciosa exprime a existência, as alegrias e as mazelas.
O homem fala com seu corpo, linguagem que emana do corpo próprio, que denota expressão favorecendo o nascimento do desejo, das sensações e das emoções, forjando, também a tessitura de relações.
Ademais, o corpo como um espaço de significações e saberes possibilita ao homem vivenciar o mundo e as coisas que nele estão através de uma relação de engajamento homem/mundo e, o corpo é compreendido como um nó de significações e de comunicação expressando a todo momento o sentido da existência.
A partir das reflexões elencadas em torno do fragmento do poema de Carlos Drummond e da filosofia de Merleau-Ponty, podemos auferir que a interpretação sobre o corpo como um espaço de significações e saberes nos permite imaginar uma série de significados para responder porque o corpo é um ser de linguagem que, possibilita ao homem frequentar o mundo. Segundo Merleau-Ponty o corpo possibilita ao homem vivenciar o mundo e as coisas que nele estão por uma relação de engajamento. O corpo encontra-se envolvido com o mundo e, esse envolvimento possibilita ao homem construir a sua existência.
A interpretação sobre o corpo como um espaço expressivo demonstra como o homem percebe o corpo e seus significados. De maneira dialógica Carlos Drummond de Andrade nos convida a percorrer a trilha por ele traçada nos poemas sobre o corpo e o mundo. Nas várias encruzilhadas trazidas pelo poeta mineiro buscamos através de interpretações “desvelar” o corpo como expressão.
Referências
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção.Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1984.