No último dia 08 de setembro de 2024, foi destaque na página de notícias do STJ a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao empresário ou sociedade empresária. A matéria continha o título “Consumidor pessoa jurídica: quando as empresas podem ter a proteção do CDC?” 1
O texto apresentava vários julgados do Superior Tribunal de Justiça em que as pessoas jurídicas foram consideradas como consumidoras. O primeiro caso é o do REsp n. 2.020.811, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Esse julgado usou a teoria finalista mitigada. Nessa situação, uma empresa vendedora de ingressos eletrônicos para eventos ajuizou ação de cobrança contra uma sociedade especializada em serviços de intermediação de pagamentos online, em razão de débitos que teriam sido lançados indevidamente em sua conta. Alegou que o vínculo estabelecido com a intermediadora configuraria uma relação de consumo, sustentando a sua hipossuficiência fática diante da outra parte – uma empresa com atuação virtual em mais de 50 países –, e que o contrato celebrado entre elas seria de adesão. Entretanto, a Terceira Turma, entendeu que não ficou demonstrada a situação de vulnerabilidade, indispensável para o reconhecimento da condição de consumidor quando o produto ou serviço é adquirido durante o desenvolvimento de atividade empresarial, como no caso em análise.
Em outro julgado semelhante, no REsp. n. 1.497.574, o mesmo Tribunal entendeu pela não aplicação do CDC aos contratos de empréstimo firmados por uma sociedade empresária para incrementar seus negócios. A decisão reafirmou a jurisprudência do STJ, que não admite a aplicação do CDC nos contratos de empréstimo tomados por empresas quando elas são consideradas consumidoras intermediárias (insumo), somente sendo possível a mitigação dessa regra na hipótese em que ficar demonstrada a hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica da tomadora. Já em outro julgado, no REsp. n. 2.001.086, o STJ também entendeu pela inaplicabilidade do CDC a um contrato de empréstimo de capital de giro. Já no julgamento do AREsp 1.321.083, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), a Terceira Turma estabeleceu que uma empresa que adquiriu aeronave como destinatária final pode ser considerada consumidora. A decisão definiu, por consequência, o foro competente para processamento e julgamento da demanda.
Em outro julgado recente do STJ, uma empresa teve um de seus caminhões segurados destruído por incêndio iniciado por uma fagulha de descarga de energia durante a operação de transferência de produto inflamável. A seguradora alegou que a hipótese estava prevista nas cláusulas de exclusão de cobertura, ao passo que a segurada sustentou que a cláusula excludente de cobertura não estava incluída na minuta encaminhada pela seguradora no momento da contratação. Apesar de ter sido reconhecida nas instância inferiores a alegação da seguradora, o Relator Ministro Bellize entedeu de forma contrária. Esse foi o entendimento no REsp 1.660.164.
Entendimento similar foi adotado pela Quarta Turma no AREsp 1.392.636, decorrente de ação indenizatória movida por uma instituição de ensino superior contra a seguradora devido à recusa de cobertura de sinistro. A universidade privada acionou o seguro depois que chuvas e ventos fortes danificaram a estrutura física do estabelecimento.
E por fim, a Quarta Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.176.019, decidiu que que o transportador que contrata seguro para proteger sua frota ou cobrir danos a terceiros também é consumidor. O colegiado destacou, no entanto, que a abrangência da cobertura securitária deve estar claramente descrita no contrato.
Todos esses julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça só confirmam a importância da discussão sobre o finalismo mitigado que defendemos há muitos anos, em vários artigos e no livro Curso de Direito do Consumidor Completo e Consumidor-empresário: a defesa do finalismo mitigado, ambos publicados pela Editora D´Plácido. 2
Isso acontece porque o legislador brasileiro definiu o conceito de consumidor em quatro dispositivos diferentes, na verdade, em três artigos espalhados pelo Código. O art. 2º, caput, o art. 2º, parágrafo único, o art. 17, e por fim, o art. 29.
Duas teorias principais foram criadas para elucidar o tema, a teoria maximalista e a teoria finalista. Percebeu-se que a duas teorias possuíam problemas, uma vez que a primeira tornava o direito do consumidor como um direito geral privado e desaparecia com a figura do vulnerável. Já a segunda, excluía da aplicação do CDC as pessoas jurídicas expressamente previstas na lei. Na tentativa de se encontrar um equilíbrio entre os dois opostos, surgiu o chamado finalismo mitigado ou aprofundado. O princípio da vulnerabilidade passou a ser o norte na interpretação do conceito de consumidor, entendendo-se este, excepcionalmente, quando demonstrada a vulnerabilidade no caso concreto.
As teorias sobre o conceito e campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor no Brasil não estão livres de críticas. Todas elas trazem algum problema na sua aplicação prática, como já afirmamos inúmeras vezes. 3
Sobre o maximalismo, pode-se afirmar que é uma noção objetiva de consumidor, pois afirma que o CDC é um código de consumo, não importando quem está nos polos da relação jurídica. O que importa é o ato de consumo, independente de quem o tenha realizado. O destinatário final é o destinatário fático, ou seja, aquele que retira o produto ou serviço da cadeia produtiva, logo, a destinação final do produto ou serviço é irrelevante. Os dois principais problemas da teoria maximalista é que ao se considerar todos consumidores, pessoa natural e jurídica sem distinção, não existirá mais o vulnerável, além de transformar o CDC em um direito privado geral, esvaziando por completo os contratos empresariais e grande parte do direito empresarial.
O finalismo é uma noção subjetiva, pois leva em consideração a tutela do vulnerável, a parte mais fraca da relação de consumo, o destinatário final é o destinatário fático e econômico, aquele que retira o produto ou serviço da cadeia produtiva, sem reutilizá-lo, reempregá-lo na sua atividade. O grande problema do finalismo foi que ele começou a caminhar para a exclusão completa da pessoa jurídica como consumidora, o que seria uma interpretação contra legem, uma vez que está expressamente prevista no art. 2º, caput, e confirmada no art. 51, I, do CDC. “Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis. ”
O finalismo mitigado ou aprofundado veio justamente para equilibrar essa equação, ou seja, não se pode desprezar o texto da lei, mas também não se deve desconsiderar o intuito do Código de proteger o vulnerável. Desse modo, ao se utilizar o princípio da vulnerabilidade como norteador da aplicação do CDC, preserva-se ambos os aspectos, já que será considerado consumidor, o empresário ou sociedade empresária, que no caso concreto demonstre a sua vulnerabilidade, na verdade a sua hipossuficiente perante a outra parte.
Mesmo sendo uma interpretação bastante interessante entre o que dispõe a lei e seu aspecto de proteção do vulnerável, o finalismo mitigado ou aprofundado apresenta um problema prático importante, qual seja, não se consegue definir, a priori, se uma pessoa jurídica é consumidora ou não de um produto ou serviço. Vai depender sempre de quem está no polo passivo dessa relação. Ora, se não se consegue trazer uma certeza para aplicação do CDC ao consumidor-empresário, isso traz uma insegurança jurídica e incerteza nas relações contratuais.4 Por isso o Superior Tribunal de Justiça, depois de 34 anos de publicação do Código, continua a discutir o assunto em julgados e destacar a discussão em notícias na sua página.
Referências
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1. Consumidor pessoa jurídica: quando as empresas podem ter a proteção do CDC? Disponível em: Link. Acesso em 18.09.2024
2. Sobre o finalismo mitigado ver: 1 – CONSUMIDOR-EMPRESÁRIO: a defesa do finalismo mitigado. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. 2 . A aplicação do CDC ao empresário e à sociedade empresária: do maximalismo ao finalismo mitigado. Seleções Jurídicas. 7 ed.São Paulo: AD2 editora, 2013, v. único, p. 18-34. 3. O conceito de Consumidor em face do Novo Código Civil e sua interpretação jurisprudencial. Asa-Palavra (Brumadinho), v. 9, p. 109-118, 2008. 4. 20 anos do Código de Defesa do Consumidor: A evolução do conceito de consumidor. REVISTA DE DIREITO INTERNACIONAL, ECONÔMICO E TRIBUTÁRIO, v. 5, p. 395-411, 2010. 5 . 20 anos do Código de Defesa do Consumidor: a evolução do conceito de consumidor. Jus Navigandi, v. 15, p. 2709, 2010. 6. A aplicação do CDC ao Empresário e à sociedade empresária: do maximalismo ao finalismo mitigado. Revista Jurídica LEX, v. 63, p. 111-135, 2013. 7. A Aplicação do CDC ao Empresário e à Sociedade Empresária: do Maximalismo ao Finalismo Mitigado. Doutrinas Jurídicas, v. 1, p. 1, 2013.
3. OLIVEIRA, Júlio Moraes. O consumidor-empresário e a aplicação do finalismo mitigado na jurisprudência mineira. In: JORGE, Alan de Matos; MILANEZ, Felipe Comarela; OLIVEIRA, Júlio Moraes. (Orgs.) O direito do consumidor na visão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2021. p. 144.
4. OLIVEIRA, Júlio Moraes. O consumidor-empresário e a aplicação do finalismo mitigado na jurisprudência mineira. In: JORGE, Alan de Matos; MILANEZ, Felipe Comarela; OLIVEIRA, Júlio Moraes. (Orgs.) O direito do consumidor na visão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2021. p. 144.