Uma leitura crítica do medo do crime como ferramenta prática de controle penal

Uma leitura crítica do medo do crime como ferramenta prática de controle penal

princípio

No estudo deste mês, destacou-se um interessante (e importante) julgado em que se promoveu a discussão sobre a proteção de garantias fundamentais intrínsecas ao processo penal democrático, como a dignidade humana e a presunção de inocência, frente à intensificação de uma retórica coligada a uma atual política criminal pela flexibilização dessas mesmas garantias com pretensão de ampliação da repressão e de saturação do medo e da insegurança.

 

A partir do caso real citado no julgamento no Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 768422/SP realizado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e divulgado no recente Informativo n. 827, do STJ (Brasil, 2004), extraem-se representações de excepcionalidades autoritárias, entranhadas em um quadro retórico de flexibilização ou desvalorização de normas de direitos humanos transversais ao processo penal (tributárias ao acusado), em nome de uma espécie de “religião” da defesa social e apesar do regime democrático.

Essas excepcionalidades desviantes granjeiam um investimento cognitivo que incursiona um discurso ideológico refratário a práticas democráticas pela via processual penal e comunicam, aberta ou veladamente por símbolos, o modo de funcionamento das instituições do sistema de justiça criminal. O contexto expansionista atual vale-se da instrumentalização do medo do crime e, a partir dele, ativam-se práticas, tendências, discursos e simbolismos coligados a jogos políticos polarizantes de baixa efetividade e de baixa aderência ao escopo constitucional de redução estrutural de desigualdades (art. 3º, inciso III, da Constituição Federal). Como explica Giamberardino (2015), o medo revela-se “enquanto elemento negativo que parece ser o único componente com efetiva capacidade de mobilização das pessoas e de produção de efeitos decisivos na dimensão político-eleitoral. Não se trata, porém, de ‘qualquer medo’ e sim do ‘medo do crime’ o fator precípuo de sua politização”.

É de amplo conhecimento que a Constituição Federal (CF), ladeada por documentos internacionais de direitos humanos variados, de cima a baixo, ritmiza o funcionamento do processo penal intransigentemente firmado no princípio da dignidade humana e no compromisso securitário de tutela de garantias mínimas do cidadão presumivelmente inocente frente ao Estado. Conforme exposição de Dinamarco, Badaró e Lopes (2020, p. 127-128), “o direito processual penal chega a ser apontado como direito constitucional aplicado às relações entre autoridade e liberdades”, assim como, “em última análise, [que] o processo não é apenas instrumento técnico, mas sobretudo ético”.

Diante de desvios éticos emergentes de certos atos judiciais atentatórios à CF, uma atenta defesa técnica revela-se de grande relevância na tarefa de expô-los a instâncias recursais superiores, com o fim de “reduzir os danos” do impacto daqueles desvios sobre subjetividades. A sonegação de garantias fundamentais tende à consolidação no panorama atual de incremento punitivista e de excessos repressivos, quando cadenciada por políticas que pregam a “lei e ordem” como valor prevalecente, logo, não concorrencial, face a horizontes axiológicos plasmados pela proteção de garantias fundamentais do réu.

Infere-se do caso concreto referenciado no AgRg no HC 768422/SP, que o acusado por crime de feminicídio permaneceu sob julgamento pelo Conselho de Sentença (juízo natural em julgamentos de crimes contra a vida, conforme art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da CF) virado de costas para para os jurados componentes, sob o fundamento exposto pelo tribunal de justiça estadual de que “não há vedação legal para tal conduta (ser o acusado colocado de costas para os jurados), aliás, tampouco há previsão legal em sentido contrário (que o acusado seja colocado de frente para os jurados)”, vez que “trata-se de mera formalidade, cujo prejuízo deve ser demonstrado para que eventualmente seja reconhecida a nulidade”. E mais: “os jurados é que podem se sentir constrangidos de sentarem-se em posição que seus olhos cruzem com os daquele que está sendo julgado (…)” (Brasil, 2024).

O fundamento de que não há previsão legal para acomodar o acusado em posição que fique de frente para os jurados que o julgarão cortina nuances diversas enfronhadas na ideologia da defesa social, no simbolismo que permeia práticas e posturas autoritárias e na fabricação ideológica do medo. Algumas camadas podem ser exploradas a partir da leitura crítica das justificativas apresentadas para avalizar a decisão de primeiro grau pelo tribunal de justiça estadual, como a  razão que ampara a opção política de submeter o acusado a tal situação vexatória, ao submeter compulsoriamente o acusado de costas para o Conselho de Sentença enquanto os respectivos jurados o julgam, sob o pretexto de que se trata de uma mera formalidade. Uma outra camada tem manifesta natureza comunicacional, não apenas na tarefa de transmitir ao Conselho de Sentença, mas também à sociedade “amedrontada”, qual a mensagem predominante que essa opção judicialmente operacionalizada guarda em si.

A questão pode estar talvez na ausência de uma racionalidade que explica, mas sem justificar, o ato de manter o réu em tal posição. Nesse ponto, Fassin compreende que “os excessos – impulsivos ou deliberados – revelam que persiste até hoje, no ato de punir, algo vai além da pura racionalidade de sua justificação ou de sua interpretação” (Fassin, 2021, p.106). Para além disso, a resistência em se acolher (e aplicar) mandamentos sedimentados na CF e no arsenal normativo-humanístico – sob os quais repousa o processo penal brasileiro – acopla-se a essa irracionalidade punitivista que extravasa a teorização processualística democraticamente ambientada.

O medo – no caso real, supostamente contornado pela perda do contato visual dos jurados com o acusado posicionado de costas a eles – transfigura-se em um ingrediente da performance violenta de instituições formalmente democráticas inseridas nesse paradoxo intrínseco. Batista (2001) explica que “o medo e a memória do medo justificam políticas autoritárias de controle social” e “o medo torna-se fator de tomadas de posição estratégicas no campo econômico, político ou social”. De outra parte, para Pestana (2007):

o sistema penal brasileiro caminha atualmente menos para a consolidação democrática, e muito mais para a atuação simbólica, traduzida em aumento desproporcional de penas, maior encarceramento, supressão de direitos e garantias processuais, endurecimento da execução penal entre outras medidas igualmente severas. Tal sistema opera no sentido do “excesso de ordem”, único capaz de tranquiliza nossa atual sociedade de consumo hedonista e individualista (Pestana, 2007).

O caso revelado no AgRg no HC 768422/SP expõe, exemplificadamente, como o medo e a insegurança são instrumentalizados como justificativa de posturas autoritárias, absolutamente dissociadas das prescrições constitucionais e substancialmente utilitaristas, que credenciam excessos e arroubos repressivos como símbolos de um estado cada vez mais repressor.

 

Referências

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BATISTA, Vera Malaguti. Autoritarismo e controle social no Brasil – Memória e medo. Revista Sem Terra. n. 10, 2001. Disponível em: site. Acesso em 15 out. 2024;

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo n. 827. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 1 out. 2024;

DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2020;

FASSIN, Didier. Punir. Uma paixão contemporânea. Tradução: André Bezamat. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2021;

GIAMBERARDINO, André R.. A construção social do medo do crime e a violência urbana no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 23, n. 115, p. 221-253, jul./ago. 2015;

PESTANA, Debora Regina. Os contornos do Estado punitivo no Brasil. Perspectivas, São Paulo, v. 31, p. 29-46, jan./jun. 2007, p. 29-46. Disponível em: site. Acesso em: 15 out. 2024;

ZIZEK, S. O espectro da ideologia. In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

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