Maite Alberdi, diretora chilena do filme No Lugar da Outra (El lugar de la outra), disponível em plataforma de streaming, partindo de caso verídico (homicídio consumado pela escritora María Carolina Geel, a qual em 14 de abril de 1955 alvejou seu namorado Roberto Pumarino, com cinco tiros, no restaurante de luxo do hotel Crillón, em Santiago; foi condenada judicialmente, escreveu um livro no cárcere e findou por receber indulto presidencial quanto à pena que lhe fora imposta), narra a história de uma introvertida funcionária de tribunal, Mercedes, que ao visitar o apartamento da escritora detida por imputação de homicídio, desperta para questões particulares, tais como a dinâmica de sua vida íntima, possibilidades diversas de autorrealização, identificação do papel da mulher na sociedade, etc. Acima de tudo, é possível vermos uma Mercedes exausta, com sua identidade anulada por performances materna e conjugal, aflita por momentos de silêncio e satisfação, como exemplificativamente na película a leitura de um livro, o preparo de refeição a ser degustada com calma, um banho quente, etc. Também no trabalho é possível ver a inteligência de Mercedes em ação, sugerindo ao chefe (magistrado que atuou no julgamento de Geel) idéias que ele encampa rapidamente como se fossem suas, sem notar que mediante a simples menção, nada além tencionava Mercedes do que obter mais tempo de usufruto de “seu idílio” (apartamento desocupado da acusada, que estava detida), como verdadeiro refúgio de uma existência monótona e repleta de obrigações, desenvolvendo-se a trama com enfoque do comportamento psíquico, em termos subjetivos, da personagem Mercedes.
Alia Trabucco Zerán escreveu o livro As homicidas (Fósforo, 2023, tradução de Silvia Massimini Felix), onde a temática consiste em mulheres assassinas. Pertinentes suas palavras:
“é mais fácil imaginar uma mulher morta que uma mulher que mata. E não importava se eu dizia “mulheres violentas” ou “homicidas”, o mesmo deslize, mais cultural que auditivo, conseguia apagar a imagem perturbadora de uma mulher armada e substituí-la por outra desarmada e debaixo da terra. Mulheres e assassinas eram verdadeiros antônimos, palavras que juntas eram inaudíveis, inimagináveis, a ponto de provocar desde uma curiosa surdez até as fantasias mais aterrorizantes: a aparição de bruxas, medeias, vampiras, Femme fatales”1
Causa estranheza ao espectador do filme No lugar da outra a circunstância, bastante clara, de que a então acusada Carolina Geel não fora devidamente ouvida pelas autoridades. É como se a versão que pudesse apresentar, num sentido ou noutro, fosse indiferente. Outros costumes da época sobre a presença feminina em espaços de convivência pública também são ilustrados no filme, revelador de uma cultura patriarcal que atua como pano de fundo para o “modo de existência” das personagens.
Mulheres exaustas, absorvidas pelo acúmulo de funções e deveres familiares, estereotipadas, criticadas quando não condizentes com tais estereótipos.
Outro filme que alude em especial ao etarismo e a perversidade da cultura egocêntrica da pós-modernidade, com ênfase na vaidade feminina e fixação pela idéia de “eterna juventude e perfeição estética” é “A Substância”, lançado no Brasil em 19 de setembro de 2024, dirigido por Coralie Fargeat e estrelado por Demi Moore. A personagem Elisabeth Sparkle é uma atriz que fora famosa e bem sucedida, apresentando, aos 50 anos, um programa de ginástica. Recebe a notícia abruptamente que seria trocada por atriz mais jovem , mergulhando em crise de natureza existencial. Dentro desse contexto, descobre a Substância, uma espécie de droga que promete torná-la a “melhor versão de si mesma, mais jovem e bonita2”. Embora não seja possível nos referirmos à película como agradável ou palatável, diante da intenção deliberada de usar imagens violentas e disformes, é preciso consignar a exatidão das mensagens transmitidas ao público, com clareza. A obsessão pela aprovação da sociedade, como se significasse “ser amada e valorizada” embasada em vaidade e busca de juventude conduz a cenários trágicos, autodestrutivos e egoístas, com invisibilização de mulheres por pessoas do mesmo gênero, no limite, em contextos de proximidade até mesmo “parental”. Diversas cenas são impactantes mas também chama a atenção a cena de um grupo de empresários/homens poderosos, todos idosos com cabelos brancos, olhando para um corpo feminino jovem e belo. Aí temos a arte, fazendo seu papel de nos provocar a refletir sobre a realidade, algo além do entretenimento, embora este tenha seu valor e funcionalidade.
Guardadas as devidas divergências entre os séculos XX e XXI , há a preservação de uma elucidativa descrição dos scripts de gênero (com performances “atualizadas”), com subsistência na desproporção das relações de poder entre homens e mulheres nas sociedades organizadas sob a cultura patriarcal, que não é mera ficção, reitere-se, muito ao contrário, propicia-nos a melhor compreensão do cenário de nosso país em que, recentemente, foi sancionada a Lei 14.994/24, a qual inovou o sistema jurídico com o endurecimento de medidas no âmbito penal, sob o evidente escopo de prevenir e combater a violência contra a mulher, especialmente o feminicídio, alçado a crime autônomo, com a maior pena máxima prevista na legislação, quarenta anos. O denominado Pacote Antifeminicídio alterou O Código Penal, a Lei de Contravenções Penais, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos e por fim, a Lei Maria da Penha. Dentre as variadas modificações legislativas, destacam-se, além da tipificação autônoma do crime de feminicídio, a dispensa de representação pela vítima em caso de ameaça contra mulher por razões da condição do sexo feminino, nos moldes já explicitados no Código Penal (violência doméstica e familiar, inclusive) e a inserção, como efeito da condenação penal, da incapacidade para exercício do poder familiar, tutela ou curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão, praticados contra o cotitular do poder familiar, filho, filha, outro descendente, tutelado ou curatelado, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões do sexo feminino, além do agravamento das penalidades previstas por descumprimento de medida protetiva (Lei Maria da Penha). De resto consigne-se que a Lei 13.715/18 já havia incluído no Código Civil a hipótese de perda do poder familiar por ato judicial aquele que praticasse feminicídio, dentre outras condutas, de modo peculiar a violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Mas então, por que seria tão mais fácil imaginarmos mulheres mortas, como considerou Alia Trabucco Zerán? Porque, efetivamente, elas são aniquiladas em abundância, com índices que se elevam ano a ano. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2024 3 declinou que o número de feminicídios entre 2022 e 2023 cresceu 1,4%, atingindo a marca de 1.463 vítimas apenas em 2023, com a proporção de mais de quatro mulheres vitimadas a cada dia.
Logo, àqueles que criticam o endurecimento das penalidades e regramentos em benefício da preservação da higidez física e psíquica da vítima (gênero feminino) de violência doméstica e familiar, apenas podemos rememorar os dados públicos que apontam para o aumento do feminicídio e da violência contra a mulher em nosso país. Como transparece em diversas películas do cinema atual na descrição da conjuntura cultural que propicia a explosão da violência, a diretriz de política pública é, lamentavelmente, necessária, já que as campanhas realizadas em veículos de comunicação e outras iniciativas no seio da sociedade não vem sendo suficientes a inibir a prática perniciosa, de modo inescusável.
Referências
____________________
1. Paulatinamente #11: Mulheres homicidas, Anatomia de uma queda e Ana Mendieta, é mais fácil imaginar uma mulher morta que uma mulher que mata, Carvalho , Paula, www.paulac.substack.com, acessado em 15/10/2024.
2. Guerra, Dora, “A Substância: entenda por que filme com Demi Moore é um dos mais comentados de 2024”, publicado em 12/10/2024, www.g1.globo.com, acessado em 20/10/2024.
3. BUENO, Samira et al. Feminicídios em 2023. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024;