Recentemente, outro episódio, exposto nas redes, causou desproporcional impacto junto à opinião pública, quer pela dimensão da repercussão que ensejou seu conhecimento por internautas, quer por claramente ilustrar a cultura patriarcal vigente, a qual serve de base para a eclosão da violência doméstica e familiar, sob suas variadas modalidades, que a todos nós incumbe prevenir, combater e afastar.
Com efeito. Um vídeo começou a circular em redes sociais revelando legítima confusão, em voo que saía do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, rumo a Confins, em Belo Horizonte. Uma passageira, Jennifer Castro, não teria cedido seu assento próximo a janela a uma criança. A cena foi gravada por uma terceira pessoa, que não a mãe da aludida criança, denominada Eluciana Cardoso.
A passageira Jennifer, pessoa não pública, passou a ostentar em sua rede social mais de dois milhões de seguidores, os quais a teriam apoiado. A mãe da criança, Aline Rizzo, recebeu muitas críticas de internautas que acreditavam ser ela a autora do vídeo1.
Aline contou que estava com os três filhos e enquanto acomodava o filho com necessidades especiais, outro de quatro anos seguiu em frente e se sentou ao lado da avó, no assento da janela adquirido pela passageira Jeniffer. A criança saiu do lugar, sentou no assento da janela do lado oposto, mas quis voltar. Após pedido de que colocassem o cinto, o menino começou a chorar e gritar (por pretender ocupar o assento da passageira Jeniffer). Foi então que Eluciana aproximou-se, gravando Jeniffer, indagando “se ela não teria compaixão”. Diante da recusa de Jeniffer, Eluciana passou a gravar a situação e teria proferido a fase “agora eu vou deixar ela famosinha”, segundo uma testemunha declarou.
Eluciana, diante do vulto que tomou o episódio, a qual no vídeo teria dito “ser repugnante que no sec XXI uma pessoa não possuísse empatia por uma criança”, desculpou-se expressamente e Jeniffer estaria adotando medidas em juízo contra os responsáveis, na atualidade. A genitora do menino de quatro anos também apresentou declarações veementes de que não teve qualquer participação no episódio e que sofreu ofensas em profusão, por acreditarem no oposto as pessoas que acessaram o malfadado vídeo.
Eluciana, ao programa “Fantástico”, chorosa , declarou “haver perdido totalmente o controle, como se tivesse saído do seu corpo”, assentindo, ao ser indagada pela interlocutora, que isso se deveu a “indiferença” de Jeniffer.
Alguns aspectos são apreensíveis de plano e merecem destaque quanto à expressividade gigantesca que o episódio assumiu o qual, embora lamentável, não deixou de ostentar natureza corriqueira.
Na hipótese de suposição de que uma criança embarcasse em voo regular sem assento e presença de responsável, efetivamente a conduta de se ignorar um incapaz aos prantos poderia ser interpretada como “falta de empatia”. Claramente não foi isso o que aconteceu, conforme a narrativa da dinâmica dos fatos. Então, há de se indagar: por qual motivo a passageira Eluciana se sentiu à vontade para repreender verbalmente Jeniffer, imputando-lhe qualidade de “não empática”? E mais além: o gênero feminino de Jeniffer teve alguma influência para que o comportamento de Eluciana fosse exteriorizado, nos moldes em que se efetivou? Quer nos parecer que a resposta deve ser positiva às indagações, sem prejuízo da apuração de eventuais responsabilidades pelas autoridades competentes e sob o devido processo legal.
Em segundo patamar, tem-se as consequências que a mãe do menino sofreu, justamente em decorrência da conduta de Eluciana. Sem que as pessoas que acessaram o vídeo soubessem , de forma hábil, da exata dinâmica dos fatos, o que não dispensava sua divulgação por parte de fontes idôneas, passaram a ofender e execrar Aline e familiares, ao que consta das declarações ofertadas pela ofendida. Se a internet é “território sem lei”, na concepção dos usuários, isso certamente se dá por alguma omissão que incentiva tal sentimento de liberdade permissiva e deletéria, quando não de impunidade.
Uma terceira constatação, diante dos contornos do episódio, diz respeito às razões que ensejaram o vulto descomunal das manifestações majoritariamente favoráveis a uma das envolvidas (Jeniffer) e desfavoráveis a outra (Aline, totalmente alheia aos fatos e que sofreu suas consequências). Aqui a facilidade de replicação da informação, com acesso ao vídeo em plataformas e transmissão entre usuários pode elucidar, com facilidade, os motivos para Jeniffer alcançar o número de dois milhões de seguidores, de súbito. E aqui é que nos confrontamos com o vácuo na responsabilidade das plataformas digitais ie, na não interrupção da disponibilização do vídeo que estava ensejando acessos em profusão, de maneira desarrazoada e célere.
Para a opinião pública, restou a sensação de que as três mulheres se sentiram prejudicadas pelo excesso de exposição , com perda de privacidade. Inclusive a autora do vídeo e da imputação de “falta de empatia”, Eluciana, que imputou sua “perda total de controle” à postura da passageira, que regularmente adquiriu assento no avião.
O fato inconteste é que eventos com tais contornos são hábeis a provocar inúmeros danos às vítimas, especialmente de natureza moral. A cultura patriarcal que incute, inclusive entre as mulheres, que as pessoas do gênero feminino estão em plano inferior de importância – e que , portanto, podem ser mais facilmente agredidas e culpabilizadas- não prescinde, em episódios sob tais contornos, da irresponsabilidade de plataformas digitais pela exclusão de conteúdos veiculados por terceiros, com a devida rapidez e empenho, além evidentemente de se ressaltar a responsabilidade das pessoas físicas pelos atos que praticam ou as que o fizeram, no episódio em questão. Internet não é sinônimo de território livre e impune e justamente por essa circunstância, o STF está deliberando sobre o Tema 987 de Repercussão Geral.
Com efeito, o Tema 987, com Repercussão Geral, envolve discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor da internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais, por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.
O professor Anderson Schreiber2, em análise na sua coluna no JOTA, considerando o avanço dos debates jurídicos sobre a temática, ponderou a propriedade do STF proceder à interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet em harmonia com a Constituição Federal. Sugeriu, de tal sorte, quatro diretrizes: a) em casos de violações flagrantes a direitos fundamentais, identificáveis pelo teor do conteúdo postado, as plataformas digitais deveriam responder pelo dano causado independentemente de notificação ou ordem judicial, em implementação basilar do “dever de cuidado”; b) em outras espécies de violação de direitos, as plataformas digitais devem responder a partir do momento em que recebam a notificação sobre a existência do conteúdo lesivo; tratam-se de hipóteses em que as violações não são flagrantes, extraídas imediatamente do teor dos conteúdos; isso não pode se dissociar, ademais, da concepção de mantença , pelas plataformas, de canal no próprio ambiente digital para envio das notificações; c) realização de controle proativo de licitude do conteúdo publicado por intermédio de recursos tecnológicos, como IA, com a possibilidade de dedução de pedido de revisão humana pelo usuário detentor do conteúdo removido; por derradeiro, impõe-se às plataformas o dever de outorgar publicidade e transparência aos procedimentos e parâmetros que adotam para a moderação e remoção de conteúdo, além de fazê-lo quanto ao modo e à finalidade para a qual captam e utilizam dados pessoais de seus usuários, em respeito à LGPD (Lei 13.709/08).
Em 05 de dezembro de 2024 3 Ministro Dias Toffoli negou provimento ao RE 1037396 e propôs fixação de tese da repercussão geral, declarando a inconstitucionalidade do artigo 19, caput e parágrafo primeiro do Marco Civil da Internet, sendo inconstitucionais , por arrastamento, os demais parágrafos do artigo 19; como regra geral, o provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente nos termos do artigo 21 do MCI, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, inclusive na hipótese de danos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, quando, notificado pelo ofendido ou seu representante legal, preferencialmente pelos canais de atendimento, deixar de promover, em prazo razoável, as providências cabíveis, ressalvadas as disposições da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE; já em 11/12/2024, o Ministro Luiz Fux, acompanhando o relator, propôs fixação de tese: “A disposição do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei Federal 12.965/14) não exclui a possibilidade de responsabilização civil dos provedores de aplicações de internet por conteúdos gerados por terceiros nos casos em que, tendo ciência inequívoca do cometimento de atos ilícitos, seja porquanto evidente, seja porque devidamente informados por qualquer meio idôneo, não procederem à remoção imediata do conteúdo; considera-se evidentemente ilícito o conteúdo gerado por terceiro que veicule discurso de ódio, racismo, pedofilia, incitação à violência, apologia à abolição violenta do Estado Democrático de Direito e apologia ao Golpe de Estado. Nestas hipóteses específicas, há para as empresas provedoras um dever de monitoramento ativo…”.
O que se vislumbra dos votos proferidos pelos Ministros do STF são posicionamentos uníssonos quanto à inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, ao restringir a responsabilidade das plataformas digitais pela não exclusão de conteúdos de terceiros somente após notificações judiciais e quanto ao fato, inexistem dúvidas, já que violações a direitos não podem obrigatoriamente depender de ordens judiciais para serem rechaçadas por organismos que instrumentalizam a replicação de tais violações.
Embora nos pareça que o posicionamento do Ministro Fux seja mais consentâneo com as ponderações do professor Schreiber , inclusive de modo pertinente já que violações flagrantes a direitos fundamentais , tais como manifestações de ódio, racismo, etc, não devem se sujeitar a notificação prévia dos atingidos pelos conteúdos de terceiros para exclusão, suficiente o conhecimento das plataformas, nos afigura pouco recomendável a prévia definição de hipóteses de conteúdo “evidentemente ilícito”, taxativamente. O tempo a ser considerado para valoração do conteúdo e exclusão pelas plataformas deve ademais ser razoável, tanto em caso de prévia notificação quanto em contexto divergente.
Por fim, observamos que se a dinâmica do mundo conectado é peculiar à rapidez quase instantânea, as plataformas que atuam na internet não podem olvidar essa circunstância. No caso concreto ao qual nos referimos, da disputa pelo assento em avião, a maior velocidade na exclusão do vídeo postado pela filha de Eluciana poderia ter minimizado, em muito, os reflexos deletérios da ocorrência para as pessoas atingidas, inexistem dúvidas a propósito.
Referências
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1. www.g1.globo.com, matéria veiculada em 08/12/2024, acessada em 13/12/2024;
2. “ De volta para o futuro: quatro diretrizes para o artigo 19 ddo Marco Civil da Internet”, www.jotainfo/opiniao e analise, publicado em 18/11/2024 e acessado em 13/12/2024;
3. www.portal.stf.jus.br, acessado em 13/12/2024.