Inserido em período excepcionalíssimo de pandemia, marcado pelas restrições de direitos fundamentais. Chama-se atenção às implicações pelo retrocesso, também, no tocante à defesa do consumidor. Garantia esta, inclusive, prevista constitucionalmente nos moldes do inciso XXXII do art. 5º da Constituição de 1988.
A síntese dos estudos de Zygmunt Bauman relativos à sociedade de consumo1 nos brinda com um paralelo no sentido de que é imprescindível ao cidadão ter equilíbrio entre a exclusão pela falta do consumo e a adesão ao consumismo irresponsável, capaz de arruiná-lo. Tal premissa inserida em contexto de larga escala, remete à implicação dos males de uma pandemia para com a economia individual de cada cidadão.
Nesse sentido, vê-se no Superendividamento2 um fenômeno socioeconômico em que o coletivo se depara com a má gestão dos recursos adquiridos pelos seus cidadãos, de modo que uma faixa relevante dos nacionais contraia dívidas de proporções muito superiores aos ganhos, algo corriqueiro em grupos de menor informação, os quais, por conseguinte, acabam por lidar com as dificuldades em gerir recursos. Seja pela baixa renda ou pela falta de orientação, mas principalmente, pela exposição excessiva, senão abusiva, de produtos e serviços, assim como, de crédito acessível e irresponsável para adquiri-los.
No tocante ao “crédito ao consumo”, é de se dizer que nas fases de democratização do crédito e crises mundiais, quiçá, a quarentena, se encontram perigos. O problema vai além do endividamento, vez que o Brasil não conhece, até então, a falência do consumidor. Assim, o fenômeno expõe a exclusão da sociedade de consumo. É de se inferir que o número de famílias com dívidas em cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro bateu recorde em 2020.3 Outro fato preocupa: o porcentual de famílias brasileiras endividadas alcançou 66,6% – o maior desde o início da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, em 2010. Frisa-se: o último levantamento foi feito já na pandemia de coronavírus no Brasil.
O que se tem, por consequência, é uma hipótese de força maior,4 agravada pelas medidas de “isolamento social”. O que indica que a crise de saúde global terá forte impacto na economia e no mercado de trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), há sério risco de aumento no número de desempregados no mundo em quase 25 milhões.5 Estima-se também que a pobreza no trabalho cresça significativamente.
É certo que a crise acaba por atingir mais fortemente os grupos ditos “supervulneráveis” da população, a exemplo dos informais, idosos e baixa renda. Aqueles que já se encontravam inadimplentes – 60 milhões de brasileiros – próximo de 40% da população adulta (número superior ao da população total da Itália) enfrentarão certamente um duro obstáculo para a reestruturação das suas dívidas.
Neste sentido e em vista de combater o fenômeno, merecem destaque alguns dos instrumentos da recém-aprovada, Lei nº 14.181/2021, responsável por propor atualizações no CDC e no Estatuto do Idoso, que convergirão em benesse aos consumidores.
No momento, o que se enseja é uma política coordenada capaz de resguardar os empregos e propor uma recuperação sustentável e equitativa, de modo a inibir o impacto da crise financeira e da saúde no Brasil. O que sugere a interpretação conjunta do requisito previsto no direito positivado atinente à imputabilidade do devedor, art. 395 do Código Civil, com a causa excludente de responsabilidade da força maior, disposta no art. 393. Frisa-se que a força maior não significa o fim da obrigação de remuneração, mas somente sua dilação, razoável até o final da crise.
O Código Civil vigente, para contratos entre iguais, bem esclarece que, em matéria de serviços, os realizados devem ser remunerados, mesmo que limitados por questões de força maior, uma interessante forma de não observar culpados, mas manter o foco nos prejudicados.
Além da força maior, a pandemia caracteriza um evento incontrolável e imprevisível. Atento a isto, o CDC frisa que é direito do consumidor a modificação das cláusulas contratuais ou sua revisão “em razão de fatos supervenientes”, segundo o art. 6º, V, do CDC. Assim como a vedação expressa a cláusulas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, incompatíveis com a boa-fé́ ou a equidade, vide art. 51.
Fatores que reiteram a Boa-fé objetiva, lembrada na Lei nº 14.181/2021, e que se atenta à exigência de moratória para consumidores durante a Pandemia. Reforçando a dimensão ético-inclusiva e solidarista do CDC, na medida em que cria instrumentos para prevenir o superendividamento da pessoa física de boa-fé, no sentido de promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, seja no de reforçar as iniciativas pioneiras de tratamento pelas audiências conciliatórias com os credores para formalizar planos de pagamento.
Portanto, se em seu aspecto social o superendividamento demanda a superação da arcaica ideia de mero desequilíbrio financeiro individual para ratificar a conjectura macroeconômica adstrita ao fenômeno, o aspecto jurídico do superendividamento demarca a urgência em reconhecer o consumidor superendividado enquanto sujeito de direitos e destinatário de tutela jurídica consumerista específica no âmbito da sociedade de consumo.
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Raferências
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1. BAUMAN, Zygmund. Vida para consumo. São Paulo: Zahar. 2008.
2. ALVES, Túlio Coelho. O fenômeno do superendividamento relativo à abusividade das condutas de instituições de crédito. 2020. 62 f. Monografia (Graduação em Direito) – Dom Helder Escola de Direito, Belo Horizonte. 2020.
3. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic). 2021. Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-maio-de-2021/344492. Acesso em: 02 jul. 2021.
4. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. (BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 02 jul. 2021.)
5. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. COVID-19 deixa um rastro de alto desemprego, inatividade e empregos precários na América Latina e no Caribe. 2020. https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_764677/lang–pt/index.htm. Acesso em: 02 jul. 2021.