Dizer o (in)dizível: futebol e racismo

Dizer o (in)dizível: futebol e racismo

racismo

O presente artigo visa dissertar sobre o lugar do negro  enquanto jogador de futebol, tendo como pano de fundo  o conto Mineirinho, de Clarice Lispector (que também pode ser lido como uma crônica). O racismo fornece o sentido para que a desigualdade e o ódio racial ganhe espaço, possibilita que a relação amigo/inimigo seja estabelecida e que a violência    se dirija sempre contra os mesmos corpos.  A proposta aqui é elencar algumas semelhanças entre a realidade e a obra literária para descrever a questão racial no futebol, a invisibilidade e o preconceito que circundam a existência do ser negro.

Há muito tempo, a presença de jogadores racializados nos times de futebol, seja no Brasil, América do Sul ou Europa, alimentou a ilusão de uma democracia racial. Entretanto, por trás dessa suposta igualdade persiste um racismo desvelado, fortalecido e perpetuado por dinâmicas ofensivas. Nos campos de futebol, os atletas negros são frequentemente alvos de ofensas raciais por parte dos torcedores ou até mesmo de seus próprios colegas.

Os torcedores decidem quem será alvo dos seus ataques, em uma criação ficcional de um inimigo que, ao fazer um gol, desperta a ira, sem cerimônias nem velamentos. Dessa forma, muitos “mineirinhos” são chamados de macacos, numa triagem de vítimas que leva em consideração a cor da pele, a quantidade de gols e a frustação pela derrota imposta. Para melhor compreensão dessas constatações, retomamos a crônica Mineirinho, de Clarice Lispector inspirada na história real de José Rosa de Miranda, conhecido como Mineirinho, morto a tiros pela polícia carioca em maio de 1962. Mais precisamente, foram “13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo três deles nas costas e quatro no pescoço” (JORNAL RECOMEÇO, 2008). Mineirinho, “foi mais um desses chamados ‘bandidos’, transformados pela imprensa marrom no inimigo público número um. Para os moradores do morro, Mineirinho era uma versão carioca de Robin Hood. Sua morte com 13 tiros foi noticiada com estardalhaço.” (JORNAL RECOMEÇO, 2008). A crônica de Clarice Lispector é narrada sob a perspectiva de alguém pertencente a uma classe social mais abastada, visto que o diálogo inicial é travado entre a narradora-personagem e sua cozinheira, já indicando abismo socioeconômico existente entre elas. “Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto.” (LISPECTOR, 1999, p. 123). A crônica fornece o substrato necessário para o início de nossa análise, pois em poucas linhas descreve como funciona a teoria da necropolítica, desenvolvida por Achille Mbembe (2018), e o imaginário de medo criado para justificá-la, Lispector descreve o mal-estar que se instaura no rosto da empregada diante da indagação, que mais tarde se reflete na própria narradora, no horror da constatação de tamanha brutalidade cometida contra Mineirinho. No futebol, o primeiro gol assusta e revela como todos são parte disso, não sendo necessário chegar aos 13 para se provar a violência.

A combinação do cognitivo e do imaginativo pode ser descrita como um momento pictórico que busca descrever a realidade por intermédio de metáforas, o que exige, segundo Ricoeur (2000), uma criatividade, uma vez que a metáfora é um comércio entre pensamentos; isto é, uma transação entre contextos. Dessa forma, a mesma metáfora tem a capacidade de manter unidos diferentes contextos em uma mesma descrição.  É desta maneira que a centelha metafórica se faz presente no estar do ser negro no mundo, ou, nas palavras de Achille Mbembe (2014), no devir-negro do mundo. Em Crítica da razão negra (2014), Achille Mbembe grafa a palavra “negro” em maiúsculo, a indicar “aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender.” (MBEMBE, 2014, p. 11). Por assim ser concebido, o negro é o principal exemplo dessa racionalidade, especialmente porque a instituição do preconceito assim o colocou como aquele “que ninguém, – nem aqueles que o inventaram nem os que foram englobados neste nome – desejaria ser um negro ou, na prática, ser tratado como tal.” (MBEMBE, 2014, p. 11). Uma das consequências de práticas de discriminação ao longo do tempo é uma dramática estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado.

Compreender o modo como a realidade é descrita por meio de comparações é uma tarefa árdua, dada a relação recíproca entre teoria e prática ou, no caso específico da crônica Mineirinho, entre a descrição da realidade e a maneira como o corpo negro é socialmente percebido. Neste contexto, a metáfora funciona como um holofote para chamar a atenção para as diferenças, bem como para as mazelas. os jogadores negros não são eleitos inimigos por conta de suas habilidades, mas justamente pelo fato de serem negros. Os gols, as boas jogadas, etc., são os momentos em que o racismo se revela mais abertamente porque é quando os ânimos estão mais à flor da pele.

A visão tradicionalmente estabelecida, de que a interpretação é meramente o ato de decodificar a regra do campo de código, fica aquém de uma descrição satisfatória do que vem a ser uma estratégia interpretativa. (SOUTO e SOUTO, 2020, p.543). Por esta razão, cabe a cada um identificar o que a morte de Mineirinho e o racismo contra jogadores suscita em si.  O silenciamento a respeito das dinâmicas raciais ligadas à violência é tão profundo que, muitas vezes, o que desperta o sujeito, salvando-o, mesmo que falsamente, não é a morte do diferente, mas a quantidade de tiros. A sonolência persiste “até que treze tiros nos acordem”, até que um garoto hostilizado em campo verbalize a agressão com horror, tristeza e dor, até que um atleta demonstre que foi acuado e vítima de chacota em um jogo. Talvez os sujeitos acordem um pouco não somente com treze tiros, mas quando, por exemplo, um boneco com a camisa de Vinicius Júnior aparece enforcado em uma ponte em Madrid simulando um enforcamento. O jogador é alvo constante de torcidas adversárias. Inclusive, no dia 12 de março de 2025, ele foi hostilizado antes do jogo pelas oitavas de final da Champions League, sendo chamado pela torcida do Atlético de Madrid de chimpanzé.

O racismo é o motor do funcionamento pleno das instituições herdadas de um país escravista, de uma elite colonial e essas instituições seguem conferindo desvantagens e privilégios a partir da raça. (SANTANA; RIBEIRO, 2020, p. 17). O racismo fornece o sentido para que a desigualdade e a violência ganhem espaço; o  jogador  negro foi e é vítima de violência e, por muito tempo, se calou. Quantos Mineirinhos foram violentados e se calaram para que a invisibilidade desse lugar à visibilidade? Um ponto significativo dessa visibilidade no Brasil ocorreu em 2014, com o caso do goleiro Aranha. Ele sofreu insultos racistas de torcedores do Grêmio. A punição do clube gaúcho com a eliminação da Copa do Brasil foi uma medida rara. No entanto, desde então, punições severas como essa têm sido pouco frequentes.

Além disso, Aranha também relatou que suas oportunidades de emprego diminuíram após o incidente. Dessa forma, constata-se as consequências que a denúncia do racismo pode impor sobre os atletas, aumentando o medo de posicionarem-se contra as agressões.

O Brasil tem feito avanços significativos no combate ao racismo nos últimos anos. Em janeiro de 2023, o presidente Lula sancionou uma lei que equipara o crime de injúria ao racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível. Além disso, a nova lei estabelece penas mais severas para delitos ocorridos em eventos esportivos e culturais no país.

No âmbito esportivo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) demonstrou determinação em combater as ofensas racistas no futebol. Sendo pioneira mundialmente nesse aspecto, a CBF implementou uma medida inédita na Copa do Brasil, iniciada em fevereiro de 2023. O novo Regulamento Geral de Competições considera qualquer infração discriminatória de extrema gravidade. Sendo a punição aplicada administrativamente pela entidade.

Segundo um levantamento do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, em 2021 foram registradas 64 situações de racismo. Já em 2022, foram comprovadas 90 situações – um aumento de 40%. A alta se dá, em parte, porque os atletas têm tomado consciência da necessidade de se fazer denúncias contra as ofensas. “O jogador de futebol compreendeu que aquilo que acontece em campo, que ele dizia que deveria morrer em campo, ele já entende que isso é crime, que o racismo é crime, não pode morrer em campo e precisa ser denunciado”, diz Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório.

Infelizmente ainda é comum na América do Sul jogadores negros de times brasileiros serem violentados com palavras e gestos racistas. Em abril de 2024 o time argentino Boca Juniors sofreu uma série de punições por conta de atos de racismo em uma partida contra o Palmeiras na semifinal da Libertadores, em La Bombonera, em outubro de 2023. Via redes sociais, o clube argentino divulgou as sanções impostas pela Conmebol. Em agosto de 2024 foi punido novamente por gestos racistas de alguns torcedores na partida contra o Cruzeiro, em La Bombonera, em Buenos Aires, pelo jogo de ida das oitavas de final da Copa Sul-Americana. A Comissão Disciplinar da Conmebol impôs uma multa de US$ 50.000 pela infração ao artigo 15.2 do Código Disciplinar da Conmebol, em concordância com os artículos 15.4 e 27 do mesmo corpo legal. O valor dessa multa seria automaticamente debitado da quantia relativa aos direitos de transmissão e patrocínio.

Os clubes são punidos, mas e os agressores? O Mineirinho da vez  é o  atacante Luighi, da Sociedade Esportiva Palmeiras, alvo de ofensas racistas por um torcedor do Cerro Porteño, durante um jogo entre os dois times no dia 06 de março de 2025, no Paraguai, pela Taça Conmebol Libertadores sub-20. Ao ser entrevistado depois do jogo, Luighi se recusou a falar sobre a partida. Chorando, ele reclamou do racismo sofrido e cobrou providências da Conmebol. “A Conmebol vai fazer o que sobre isso? O que fizeram comigo foi um crime.”, desabafou o atleta. A Conmebol mais uma vez puniu o clube e os paraguaios terão que pagar multa e jogar com portões fechados.

Apesar de identificados os agressores e o Paraguai possuir, desde 2022, uma lei para punir o racismo, que prevê uma multa de até 7,8 mil para quem comete atos discriminatórios e racistas, o texto não prevê prisão. É difícil ainda que o agressor do jogador palmeirense venha a ser punido com base nessa legislação, haja vista que o ato pode não se enquadrar nos previstos na lei. e, mesmo que seja, envolve uma vítima que não mora no Paraguai, o que dificulta ainda mais uma possível punição.

Em 2025 teremos Libertadores, Sul Americana, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil e certamente outros Mineirinhos serão violentados.

A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias, com palavras, com passeatas ou notas de repúdio, mas depende de posturas e da adoção de práticas que possibilitem o desvelamento do ser negro como um ser de existência.

Clarice Lispector escreve a crônica Mineirinho na década de 1960, baseada em fatos reais de sua morte violenta. Mas, a atualidade de seu texto é factível, representativa de uma violência da sociedade que continuamente e metaforicamente violenta vidas negras.

 

Referências

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BRASIL.  Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Disponível em: link. Acesso.15 mar. de 2025.

JORNAL RECOMEÇO. O conto “Mineirinho”. 02 abr. 2008. Disponível em: link. Acesso em: 15 jul. 2020.

Lispector, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.123-126.

Mbembe, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

Observatório racial do futebol. Disponível em: link. Acesso em 19.mar.2025.

Ribeiro, Dudu; Santana, Luciene. Racismo: uma tecnologia de poder. In: RAMOS, Sílvia, et. al. [Org.]. Racismo, motor da violência: um ano da Rede de Observatórios da Segurança. Rio de Janeiro: Anabela Paiva, Centro de Segurança e Cidadania (CESeC), 2020, p. 14-17. Disponível em: link. Acesso em: 03 ago. 2020.

Ricoeur, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.

Souto, Gisleule Maria Menezes e Souto, Luana Mathias. NECROPOLÍTICA E A (RE)LEITURA DA CRÔNICA MINEIRINHO, DE CLARICE LISPECTOR. In: Anais do Congresso Internacional: preservar e fortalecer a democracia em tempos de pandemia / [organizado por] Marciano Seabra de Godoi [et al…]. – Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2020. 726p. ; 24cm (Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas PPGD PUC Minas)

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