Entre o Amor e a Lei: A Invisibilidade Jurídica das Famílias Simultâneas

Entre o Amor e a Lei: A Invisibilidade Jurídica das Famílias Simultâneas

constelação familiar

Os arranjos familiares que, ainda, chamamos de novos arranjos há muito não são novos, se é que em algum momento chegaram a ser; salvo se pensarmos que são novos frente as nomenclaturas doutrinárias e a proteção do Judiciário, e, posteriormente, do Estado, através das mudanças legislativas; que sempre chegam em atraso frente a realidade.

Dentre esses arranjos familiares, tidos como novos, é possível determinar que alguns sofrem mais preconceito do que outros na sociedade, e consequentemente no Judiciário; que na quase totalidade das vezes advém nos casos dos vínculos de natureza afetiva e sexual; como bem elucida Maria Berenice Dias ao falar sobre as famílias simultâneas ou paralelas.

Não se questiona que somos capazes de amar duas ou mais pessoas ao mesmo tempo quando está se falando das relações entre família e amigos. Ninguém nega amar seus pais, irmãos e amigos de forma simultânea, e não se envergonha disso; muito menos é questionado sobre esses amores simultâneos.

Mas se essa pergunta for relacionada a relações amorosas, ou seja, aquelas com vínculos de natureza afetiva e sexual, a resposta será um uníssono NÃO! A base da sociedade, ainda na atualidade, tem como um dos pilares a obrigatoriedade da fidelidade; tanto que por determinação legal o casamento tem como um dos seus deveres o dever de fidelidade; e nas uniões estáveis o dever de lealdade.

Contudo, não se pode afirmar que esse pilar é baseado na realidade social, quase que como uma extensão do que naturalmente aconteceria com as pessoas em seus relacionamentos afetivos, ou seja, a resposta social que se estende ao determinado e lei faz crer que assim que as pessoas decidem construir um relacionamento é natural que não gostem mais de outras pessoas, e, consequentemente, a assim a fidelidade torna-se uma situação natural, sempre havendo fidelidade recíproca entre os casais.

Trata-se de uma realidade idealizada, obviamente, e podemos até questionar se não uma forma de controle social, especialmente, das mulheres, uma vez que a realidade histórica demonstra que os homens sempre buscaram relacionamentos extraconjugais, ou qualquer que fosse o relacionamento estabelecidos com suas parceiras; pelos mais diversos motivos. A monogamia não é exclusiva para os homens, na prática.

Não se está, contudo, tornando o gênero como marcador da existência das relações simultâneas, porque há mulheres que vivenciam essa mesma situação; mas a realidade ainda demonstra vivemos numa sociedade patriarcal e muito machista, que naturaliza essa conduta para os homens, e criminaliza, no sentido leigo da palavra, quando se trata de mulheres.

Com quanta naturalidade se propaga a figura do caixeiro viajante, não é mesmo? Impossível quem não conheça uma história, no mínimo, do homem que mantém duas, ou mais famílias, sendo uma delas a família “oficial” (e do qual ele não pretende jamais abrir mão do vínculo)?

É, comum, também, que homem mantenha ambas as famílias, compostas por mulheres e filhos; e que ao longo dos anos vai se desdobrando entre esses relacionamentos, dividindo-se entre duas, ou mais casas.

Portanto, por mais que a sociedade queira naturalizar a fidelidade e lealdade como consequência natural das pessoas que decidem manter um relacionamento afetivo a realidade demonstra que isso é totalmente ao contrário.

Busca-se, também, entender o quanto as famílias têm consciência da existência uma das outras, e havendo consciência questiona-se se há uma interação entre elas, como, por exemplo, a convivência dos irmãos. A prática nos mostra que ambas as situações são possíveis.

Há as famílias que desconhecem a existência uma da outra, até por exclusiva má-fé do homem, que se apresenta como uma pessoa livre de qualquer impedimento para se relacionar, que leva a evolução da relação e a consequente formação da família, inclusive, com filhos.

Entretanto, é possível que as famílias saibam da existência uma da outra, ou seja, as mulheres sabem da existência uma da outra, e os filhos podem, inclusive, se conhecerem e conviverem.

Nesse caso o arranjo é conhecido por todos e a todos satisfaz, o que leva a esposa continuar a ostentar seu marido e seu status de casada socialmente; enquanto a companheira, ou companheiras, nada exige e se conforma em ter seu companheiro nos momentos que esse tem disponível, o que não retira o afeto que ela lhe dirige nos momentos em que é possível compartilharem.

Em ambos os casos, a doutrina passou a denominar de famílias simultâneas, ou paralelas, sendo que Maria Berenice Dias entende ser primeira denominação a melhor, justamente porque como as paralelas nunca se encontram isso não demonstra a veracidade dos fatos, pois como visto a simultaneidade das famílias pode ser conhecida e aceita pelas duas mulheres.

Para além dos nossos juízos de valores, é preciso que se enxergue as famílias simultâneas, também, no viés social que ela acontece; e nesse sentido temos a sociedade patriarcal, extremamente machista, que coloca a mulher na sociedade numa posição ainda frágil e desigual, por isso necessário que se reflita sobre o quanto é satisfatório, realmente, esse arranjo familiar; pelo menos do ponto de vista das mulheres. Isso porque a sociedade continua muito permissiva aos comportamentos dos homens, como se fosse da natureza deles; assim como é bem comum que as mulheres, e também as das famílias simultâneas, sejam responsáveis pelos cuidados da casa e dos filhos, e os homens os únicos provedores.

Independente dos motivos dos arranjos, e da consciência ou não das mulheres envolvidas, a verdade é que essas famílias existem e em algum momento terão necessidade de socorrer-se do Judiciário, em especial as mulheres; uma vez que a elas não vige o princípio constitucional da igualdade que está presente quando falamos dos filhos e seus direitos.

Nesse sentido é preciso ressaltar que há uma inércia do Poder Legislativo, o que consequentemente faz com que essas famílias busquem amparo no Poder Judiciário mas a maioria das decisões judiciais denega direitos a essas famílias, pela aplicação da Tese de Repercussão Geral 529, consolidada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.045.273/SE; pela qual a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período temporal, até mesmo para fins previdenciários.

Vale lembrar, porém, que, retirando o caso de bigamia, o ordenamento jurídico brasileiro não proíbe o reconhecimento das uniões simultâneas, o que nos faz crer que a posição jurisprudencial advém de julgamento com juízo de valor, tendo como partida o pressuposto de que a monogamia e a moral seriam feridas quando se trata de famílias simultâneas

A garantida a vida digna, representada pelo princípio constitucional da dignidade humana é deixada de lado quando se trata das famílias simultâneas, esquece-se que a essas famílias deve, também, ser garantida a aplicação desse princípio.

Mas, ainda, deixa-se de lado as responsabilidades jurídicas que nascem com a existência dessas famílias; sendo, assim, primordial que essas famílias sejam reconhecidas através de normas específicas, para que elas não continuem a ser invisibilisadas, mas acima de tudo que se impeça que uma das partes tenha mais privilégios que a outra nessa família; mas enquanto isso não acontece cabe ao Judiciário adaptar-se as mudanças sociais e proteger as famílias que dele se socorrem, sem qualquer juízo de valor moral.

 

Referências

____________________

CAMBI, Eduardo Augusto Salomão e GARCEL, Adriane. Reconhecimento de Efeitos Jurídicos às Famílias Simultâneas: A Monogamia como Valor Ético e Social. www. ejud.tjpr.jus.br/documents/13716935/90211966/3/reconhecimento-de-efeitos-juridicos-as-familias-simultaneas-a-monogamia-como-valor-etico-e-social.

COSTA, Vanuza Pires e ANTUNES, André Silva Jorge. Famílias Simultâneas e seus Efeitos Jurídicos. www. jus.com.br/artigos/86542/famílias-simultaneas-e-seus-efeitos-jurídicos.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 16ª edição – São Paulo. Editora Jurispodium, 2023.

LARA, Luisa Abreu. Patriarcalismo e monogamia: a desproteção das famílias paralelas como consequência do modelo patriarcal de família. www. ibdfam.org.br/artigos/1663.

SANHUDO, Victória Barboza. Pluralismo das entidades familiares e a necessidade de tutela jurídica às famílias paralelas. www.ibdfam.org.br/artigos/1982/Pluralismo+das+entidades+familiares+e+a+necessidade+de+tutela+juridica+as+familias+paralelas.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. www.portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussão\.

 

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio