Corpo: Um Diálogo Expressivo

Corpo: Um Diálogo Expressivo

business-financial-concept-with-magnifying-glass-question-mark-yellow-background-flat-lay

Meu corpo  não é meu corpo,

é ilusão de outro ser.

Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz

Que a mim de mim se oculta.”  (ANDRADE, 1984)

 

O presente artigo visa dissertar sobre o corpo como um ser de linguagem tendo como pano de fundo, fragmentos de poemas sobre o corpo de Carlos Drummond de Andrade e, a filosofia de Merleau-Ponty.

É pelo corpo que nos situamos no mundo, relacionamo-nos com outrem, percebemos somos percebidos, tocamos e somos tocados.

O corpo é um fenômeno expressivo e, como tal manifesta-se de maneira indireta e direta numa relação de engajamento no mundo. Este corpo fenomênico, também chamado por Merleau-Ponty de “corpo-próprio”, é um corpo que é sujeito de seus atos, que possui uma intencionalidade e, que se encontra sempre aberto para o mundo.

Somos seres no mundo enquanto seres de presença – um corpo enquanto corpo vivido e não meramente um conjunto de órgãos “sendo um corpo que percebe e simultaneamente é percebido, ele deve deixar de ser compreendido apenas como coisa, como objeto. É a partir do corpo-próprio, do corpo vivido que posso estar no mundo em relação com os outros e com as coisas”. (COELHO, Nelson, CARMO, Paulo Sérgio do. (1991, p.48).

É pelo corpo que transitamos no mundo e, ao fazermos isso, o corpo se torna o “veículo do ser no mundo […]” (MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da Percepção, 1994,  p.122). Quando movemos o nosso corpo, é “o corpo fenomenal” (MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da Percepção, 1994, p.312) que colocamos em ação, ou seja, o corpo enquanto expressão.

Nas palavras de Merleau-Ponty (1994), o ser-no-mundo fala com seu corpo expressando uma linguagem que emana do corpo fenomenal ou corpo-próprio. Portanto, o sujeito ao falar com o corpo expressa e tece relações e, nesse contexto é ancré1, maneira de ser e estar no mundo, o próprio movimento da expressão.

O corpo, como um diálogo expressivo que traduz significação, deve ser entendido como expressivo como afirma Carlos Drummond de Andrade (1984),

 

Meu corpo, não meu agente,

meu envelope selado,

meu revólver de assustar

tonou-se meu carcereiro

não sabe que me sei.

 

O discurso do poeta mineiro ao enunciar que o corpo é um envelope selado afirma a ideia de que o corpo é determinado em função das particularidades e das experiências vivenciadas; seu objetivo é ressaltar os atributos com os quais o ser-no-mundo é compreendido na sua individualidade e, por ser dotado de expressão cada sujeito tem o direito de dispor, construir, manipular, reparar, utilizar seu corpo, e, nesse sentido parafraseando o poeta é quando o envelope é aberto e favorece o nascimento e a manifestação do desejo, das sensações e das emoções, forjando também, a tessitura de relações, ao tecer relações o corpo projeta o modo de ser do sujeito.

De acordo com Marilena Chauí, “ o corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido que se sente”, ( 1984. Introdução, p.IX). No exemplo das mãos que se tocam podemos percebe a capacidade que o corpo tem de tocar e ser tocado simultaneamente.

Há uma relação de meu corpo consigo mesmo que o transforma no vinculu do eu com as coisas. Quando minha mão direita toca a esquerda, sinto-a como uma ‘coisa física’, mas no mesmo instante, se eu quiser, um acontecimento extraordinário se produz: eis que minha mão esquerda também se põe a sentir a mão direita (…). A coisa física se anima, ou, mais exatamente permanece como era, o acontecimento não a enriquece e, entretanto, uma potência exploradora vem pousar sobre ela ou habitá-la. Assim, porque eu me toco tocando, meu corpo realiza ‘uma espécie de reflexão’. Nele e por ele não há somente um relacionamento em sentido único daquele que sente com aquilo que sente: há uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado pelo corpo, que o corpo é ‘coisa sentiente’, ‘sujeito-objeto’. (MERLEAU-(PONTY,1994, p.27)

A condição originária e ambígua do corpo é a de pertencer ao mesmo tempo à reflexibilidade e à visibilidade. É um corpo que se conhece sujeito e objeto de forma indivisível, ao olhar as coisas e o mundo, ele se olha a si, na reversibilidade que lhe é própria, vendo-se vidente.

De acordo com Merleau-Ponty, o corpo é:

[…] um si por confusão, por narcisismo e por inerência daquele que vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido -, um si portanto que é tomado entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro […]. (O Olho e o Espírito, 1984, p.89).

A experiência de ver, sentir e tocar é única e individual. O corpo é possibilidade, visibilidade e reflexibilidade que possui um passado cujos acontecimentos estão  registrados na memória corporal e, um futuro que o torna  sempre aberto ao mundo. Tudo aquilo que enquanto corpo vivemos e pensamos transforma-se em significação. Significação que é essencialmente ato comunicativo.  

Ato comunicativo que garante a expressão individual, revelando em cada gesto a intenção do sujeito. A linguagem constituída pelo corpo fenomenal que em si mesmo apresenta um estilo, é um local de inscrição de significados que se grafa no gesto, na dinâmica do corpo, quando entra em ação, assim como no ritmo e timbres da voz.

O corpo está no mundo e é nele que se manifesta consoante Merleau-Ponty (1984, p. 54), “por irradiar opacidade, silêncio, movimento de sensibilidade, criação e representação deve ser comparado a uma obra de arte” que se manifesta em um espaço por intermédio da linguagem não verbal, de gestos, as significações expressivas podem ser percebidas pelos diversos espectadores que admiram ou negam as características peculiares a cada corpo cuja significação é, segundo Merleau-Ponty (1994), o estilo e o silêncio que dele emanam. É como obra de arte passível de reconhecimento que o corpo é  compreendido como um diálogo expressivo.

Carlos Drummond de Andrade escreve com a astúcia de quem busca “desocultar” o corpo e sua expressividade, pois no caso da poesia, segundo Merleau-Ponty diferentemente da música e da pintura, a potência da palavra é menos visível do que a dos sons e das cores porque, conhecendo o sentido comum dos vocábulos, temos a ilusão de possuirmos tudo quanto é preciso para a compreensão de qualquer texto como na epigrafe abaixo do poema Missão do Corpo no qual a corporeidade é compreendida como existência, e o local onde os acontecimentos se inscrevem.

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver

e de cumprir os ritos de existir !

Amo tuas imperfeições e maravilhas,

amo-as com gratidão, pena e raiva

intercadentes.

Em ti me sinto dividido, campo de

Batalha sem vitória para nenhum lado

e sofro e sou feliz na medida do que

acaso me ofereças. (ANDRADE, 2002).

É pelas vidas da corporeidade, ou mente corpórea, termo da filosofia que designa a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo, que se institui o corpo como um diálogo expressivo que, Merleau-Ponty propõe “desvelar” a potencialidade do corpo enquanto experiência vivida e, desta forma o corpo é compreendido como um campo de experiência e reflexão, a partir do qual se desdobram possibilidades epistemológicas, éticas, estéticas, sociais e históricas.

 

Notas

____________________

1. É a ancora, pois fixa o ser-no-mundo. A metáfora carrega o sentido próximo á de um ancoradouro (ancrage) “existe uma incorporação, incorporar significando, aqui, absorver através do corpo. (MERLEAU-PONTY, 1994, p.123).

Referências

____________________

ANDRADE, Carlos Drummond de. 100 poemas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

ANDRADE, CARLOS Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

COELHO JÚNIOR, NELSON; CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty: filosofia como corpo e existência. São Paulo: Escuta,1991.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Abril Cultural 1994.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espirito. In: Col. Os Pensadores.   Trad: Marilena de S Chaui. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio