A história das reclamações de consumidores é bem mais antiga do que se imagina

A história das reclamações de consumidores é bem mais antiga do que se imagina

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Em recente notícia publicada no Portal R7, foi apontado que a reclamação de consumidores mais antiga que se tem notícia na história da humanidade, é a reclamação de Nanni, um cliente insatisfeito que registrou sua indignação contra o comerciante Ea-Nasir. Essa reclamação data de aproximadamente 1.750 anos a.C., ou seja, há 3.767 anos.1

Segundo a reportagem, a narrativa tem início na cidade de Ur, localizada no atual sul do Iraque, antiga mesopotâmia, onde arqueólogos, durante escavações realizadas no início do século XX, descobriram a residência de Ea-Nasir, um comerciante de cobre pertencente à influente guilda Alik Tilmun.

Entre os objetos encontrados, havia várias tabuletas de argila com reclamações de clientes, mas uma delas se destacou: a de Nanni. Escrita em acádio, no sistema cuneiforme, a peça mede apenas 11,6 centímetros de altura.

Traduzida pelo assiriólogo A. Leo Oppenheim no livro Cartas da Mesopotâmia (1967), a tabuleta mostra toda a indignação de Nanni com a má qualidade do cobre que recebeu de Ea-Nasir. “Você prometeu lingotes de cobre de qualidade, mas enviou material ruim”, escreveu ele. Nanni também acusou o comerciante de tratar seu mensageiro com desprezo, chegando a dizer: “Se quiser levar, leve; se não quiser, vá embora!”.

E não parou por aí. Ele ainda relatou que a prata enviada como pagamento foi retida e que seus mensageiros tiveram de atravessar territórios hostis sem receber o que era devido.

“Quem você pensa que é para me tratar com tanto desprezo? E olha que nós somos homens de palavra!”, desabafou. No fim, deixou claro que não iria mais tolerar a situação: “De agora em diante, só vou aceitar cobre de boa qualidade e vou eu mesmo escolher as barras, uma a uma, no meu próprio quintal.”

A reportagem também afirma que naquela época, nada de e-mails ou redes sociais. A escrita cuneiforme, considerada uma das mais antigas da humanidade, surgiu por volta de 3500 a.C. em Uruk, na Mesopotâmia.

Os escribas usavam estiletes feitos de junco para marcar a argila úmida com pequenos traços em forma de cunha. Quando essas tábuas secavam ou eram cozidas, ficavam tão resistentes que atravessaram milênios. Foi graças a esse método que a reclamação de Nanni chegou até nós quase quatro mil anos depois.

Enquanto isso, no Egito, os hieróglifos – criados um pouco mais tarde – eram registrados em papiro, um material leve e fácil de carregar. Já na Mesopotâmia, a argila era a preferida, principalmente para documentos comerciais, religiosos e legais, porque durava muito mais.

Os registros escritos eram essenciais para manter a ordem e o comércio na região. O famoso Código de Hamurabi, de 1754 a.C., por exemplo, tinha regras duríssimas. A Lei nº 107 determinava que um comerciante que enganasse um agente deveria pagar seis vezes o valor do prejuízo. Já a Lei nº 7 deixava claro: comprar algo sem testemunhas ou contrato poderia custar a vida – literalmente.

A tabuleta de Nanni, hoje no Museu Britânico (adquirida em 1953), não conta como terminou a briga com Ea-Nasir. Mas deixa uma certeza: reclamar de produtos e serviços ruins é um hábito tão antigo quanto a própria civilização.

Na obra Curso de Direito do Consumidor Completo, já apontamos outros aspectos históricos também relevantes. 2

Uma das mais antigas legislações conhecidas é o Código de Ur-Nammu, datado de aproximadamente 2040 a.C. Originário da Suméria, na região da Mesopotâmia — onde hoje se localiza o atual Iraque —, esse código registrava práticas e costumes da época que passaram a ter força de lei, inclusive prevendo penas pecuniárias para diversos delitos. O documento foi descoberto em 1952, pelo assiriólogo e professor da Universidade da Pensilvânia, Samuel Noah Kramer.

Outro importante marco jurídico da Antiguidade é o Código de Lipit-Ishtar, que teria sido elaborado cerca de dois séculos antes do famoso Código de Hamurabi. De acordo com o jurista Gladston Mamede, o texto de Lipit-Ishtar teria influenciado diretamente a legislação hamurabiana. 3

No entanto, entre todos esses antigos códigos, o mais célebre e frequentemente lembrado é o Código de Hamurabi. Esculpido em uma rocha de diorito com 2,25 metros de altura, esse conjunto de leis encontra-se hoje no Museu do Louvre, em Paris. O Código de Hamurabi consolidou diversos princípios jurídicos da época, incluindo a emblemática Lei de Talião — o conhecido preceito do “olho por olho, dente por dente”. O artigo 108, por exemplo, já indicava uma forma primitiva de proteção ao consumidor, conforme observa o jurista João Batista de Souza Lima. 4

Outro estudioso, Daniel Firmato, menciona que a lei nº 233 do mesmo código previa que o engenheiro responsável pela construção de uma casa com defeitos estruturais deveria reconstruí-la às suas próprias custas, sinalizando uma preocupação com a responsabilidade civil e a qualidade dos serviços prestados. 5

Na Grécia e em Roma antigas, ainda que de maneira indireta, já havia certo cuidado com os consumidores, especialmente no comércio de bens duráveis. O jornalista Leandro Narloch destaca que, em Roma, o número de casas de banho, padarias e tavernas era imenso, com milhares de estabelecimentos espalhados pela cidade. Em Pompéia — que contava com apenas 2% da população romana — havia cerca de 20 bares e 40 padarias. Narloch menciona ainda uma frase do filósofo estoico Sêneca, que já refletia sobre os hábitos de consumo da época: “Repare quantas coisas nós compramos só porque os outros já compraram ou porque estão em todas as casas.” 6

Durante a Idade Média europeia, especialmente na França e na Espanha, surgiram penas públicas e humilhantes para quem adulterava alimentos — como a manteiga e o vinho. Um exemplo emblemático foi o édito de Luís XI da França, em 1481, que determinava que vendedores de manteiga com pedras (para aumentar o peso) ou de leite com água (para aumentar o volume) seriam punidos com banhos escaldantes. Práticas de fraude alimentar que, infelizmente, ainda hoje se repetem e são frequentemente denunciadas pela imprensa contemporânea.

Em 4 de abril de 2022, foi publicado o Decreto nº 11.034/22, que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao estabelecer diretrizes e normas relativas ao Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) no âmbito dos fornecedores de serviços regulados pelo Poder Executivo federal. O objetivo central do Decreto é assegurar ao consumidor o direito de obter informações claras e adequadas sobre os serviços contratados, bem como garantir o devido tratamento de suas demandas.

Para os fins previstos no Decreto, considera-se Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) o conjunto de atendimentos prestados por meio de diversos canais integrados disponibilizados pelos fornecedores de serviços regulados, destinado a tratar solicitações dos consumidores, tais como pedidos de informação, esclarecimento de dúvidas, apresentação de reclamações, contestações, solicitações de suspensão ou de cancelamento de contratos e serviços.

O Decreto nº 11.034/22 revogou o antigo Decreto nº 6.523/08 e passou a vigorar 180 dias após sua publicação.

Esse novo decreto, estabelece diretrizes e normas para o funcionamento do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) prestado por fornecedores de serviços regulados pelo Poder Executivo federal. Seu objetivo é garantir aos consumidores acesso a informações adequadas sobre serviços contratados e tratamento eficaz de suas demandas.

O decreto determina que o SAC seja gratuito, acessível e disponível de forma ininterrupta, 24 horas por dia e 7 dias por semana, por meio de canais integrados de atendimento, incluindo o telefone. Esses canais devem assegurar atendimento humanizado por, no mínimo, oito horas diárias, bem como opções claras para reclamações e cancelamentos de serviços. A acessibilidade para pessoas com deficiência também é obrigatória.

Quanto ao tratamento das demandas, o SAC deve pautar-se por princípios como tempestividade, privacidade, transparência, eficiência e cordialidade, sendo vedada a repetição desnecessária de informações pelo consumidor. As demandas devem ser resolvidas em até sete dias corridos, com comunicação clara e objetiva ao consumidor, que poderá acompanhar todo o histórico de solicitações por meio de registros numéricos ou eletrônicos. O pedido de cancelamento de serviços deve ser imediato e permitido pelos mesmos canais de contratação.

O decreto também prevê mecanismos de avaliação da efetividade dos SACs, cabendo à Secretaria Nacional do Consumidor desenvolver metodologias de acompanhamento e divulgar periodicamente indicadores de desempenho. O descumprimento das normas sujeita os fornecedores às sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor e nas regulamentações dos órgãos reguladores. Por fim, o decreto revoga o Decreto nº 6.523/2008 e entrou em vigor 180 dias após a sua publicação.

Em síntese, a análise histórica revela que a preocupação com a proteção do consumidor e a qualidade dos produtos e serviços acompanha a humanidade desde os seus primórdios, como demonstra a emblemática reclamação de Nanni e os antigos códigos legais da Mesopotâmia. Ao longo dos séculos, as legislações evoluíram, consolidando princípios de responsabilidade, transparência e justiça nas relações de consumo.

No contexto contemporâneo, o Decreto nº 11.034/22 reforça essa trajetória ao modernizar e fortalecer os direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor, especialmente no que se refere ao Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).

Assim, percebe-se que, embora os instrumentos e meios tenham se transformado, a essência da proteção ao consumidor permanece como um valor fundamental para a manutenção do equilíbrio e da confiança nas relações comerciais.

 

Referências

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1. SAC Secular: 1ª Reclamação de cliente foi escrita há quase 4.000; Veja. Disponível em: site. Acesso em 29.07.2025.

2. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo. 11 ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2025. p. 25-26.

3. MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Empresa e atuação empresarial. 2. ed. Atualizada com o novo Estatuto da Microempresa: Lei complementar 123/06. São Paulo: Editora Atlas, 2008. v 1. p. 1.

4.  LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 13. Art. 108 – Se uma taberneira não aceita trigo por preço das bebidas a peso, mas toma dinheiro e o preço da bebida é menor do que o do trigo, deverá ser convencida disto e lançada nágua.

5.  GLÓRIA, Daniel Firmato de Almeida. A livre concorrência como garantia do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey; FUMEC. 2003. p. 10-11.

6. NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente incorreto da história do mundo. São Paulo: Leya, 2013. p. 18.

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