A construção da identidade se apresenta como uma das questões mais relevantes quando discutimos perspectivas antirracistas, justamente porque a raça e seu filho dileto, o racismo, atuam na desarticulação de qualquer possibilidade de afirmação da humanidade. Por meio de múltiplos dispositivos, o racismo, enquanto engrenagem de poder, manifesta-se e se consolida na desmontagem de todo pressuposto que indique ou sustente subjetividade, relacionalidade e pertencimento ao mundo humano. A categoria raça emerge, no âmbito das políticas, como princípio de regulamentação, controle e legitimação (ou negação) de uma vida. Nela residem os fundamentos normativos responsáveis, inclusive, por autorizar que determinados corpos sejam reconhecidos ou, quando considerados incompatíveis, desprezíveis.
O sequestro das possibilidades de reconhecimento de si tem relação direta com a memória colonial, uma vez que essa constituição imagética, normativa e valorativa se ancora nos pactos políticos estabelecidos entre os semelhantes. Assim, a racialização instrumentaliza um desejo perverso de desautorização e de marcação do outro — movimento que persiste, inclusive, sob as dissimulações políticas, quando, por exemplo, observamos a dificuldade de sujeitos brancos reconhecerem-se no espectro da racialidade, isto é, admitirem que ser branco também é ser racializado.
Ao reconhecermos que a raça e o racismo se alimentam de um lastro moderno e colonial de apagamento e genocídio, somos convocados cotidianamente a romper com essas molduras biopolíticas — ou seja, nos termos foucaultianos, com os parâmetros politicamente fabricados para gerir indivíduos e coletividades, normalizando a experiência social. Ao definir o que é uma vida, o biopoder estabelece os critérios de validação das subjetividades e dos grupos sociais. Nessa lógica, a norma “faz viver” e, simultaneamente, autoriza que corpos classificados como desajustados, por não se conformarem à norma, sejam tratados como descartáveis.
É possível observar, nesses termos, que a raça e o racismo atuam sistematicamente - como atualizações das ideologias modernas e coloniais - para constituir o que Sueli Carneiro define como o “não-ser”. Ao assumir a categoria “negro”, sobretudo incorporando pessoas pretas e pardas, os movimentos historicamente organizados no Brasil recalibram a rota, subvertendo o interesse da branquitude em desarticular qualquer possibilidade de afirmação da identidade e de reconhecimento da negritude. Lélia González, por exemplo, afirma que a categoria “negro”, em solo brasileiro, funciona como uma sintaxe política que confronta o mito da democracia racial, elaborado para mascarar a brutalidade do racismo. Ademais, a pensadora enfatiza a inseparabilidade entre raça, classe e gênero como pressuposto fundamental para a análise das desigualdades que se instituem como projeto político.
É imprescindível que estejamos, à distância das orientações modernas e coloniais - ancoradas na fabricação de arranjos políticos sustentados por uma igualdade excludente e por homogeneidades genocidas -, aptos a nos reconhecer, a partir das nossas diferenças, pelas lentes solidárias do Ubuntu: eu sou porque nós somos. Qualquer tentativa de fragmentar a categoria “negro” enquanto construção tecnopolítica de resistência e afirmação das múltiplas identidades sequestradas pela branquitude e por outros sistemas de opressão, como gênero e sexualidade, mostra-se nociva, pois flerta com os interesses coloniais de desumanização e desidentificação.