O termo woke, que em inglês significa “acordado” ou “desperto”, não surgiu em salas de aula ou campanhas publicitárias. Ele nasceu da dor, da luta e da resistência da comunidade afro-americana. Stay woke — mantenha-se alerta — era mais que uma frase: era um aviso de sobrevivência. Em 1938, o músico Lead Belly já conclamava os negros a “ficar acordados” diante dos perigos da segregação e da perseguição racial. Era um chamado à vigilância constante contra as armadilhas do racismo.
Ao longo do século XX, woke tornou-se um pilar da consciência negra. Não bastava estar ciente das injustiças — era preciso estar pronto para enfrentá-las. O termo simbolizava força, união e um compromisso inabalável com a dignidade e os direitos civis. Com a chegada do século XXI, woke ganhou novo fôlego. Impulsionado pelo movimento Black Lives Matter, que emergiu com força em 2013 e explodiu em 2014, o termo ultrapassou fronteiras. Tornou-se um grito global contra todas as formas de opressão. Embora a questão racial permanecesse central, woke passou a englobar outras lutas: gênero, orientação sexual, identidade de gênero, classe social, deficiência. Ser woke era estar consciente — e ativo — na desconstrução de preconceitos e na promoção de uma sociedade mais justa.
Mas como todo símbolo poderoso, woke também foi alvo de apropriação. À medida que se popularizou, passou a ser distorcido por grupos conservadores e reacionários. A “cultura woke” virou sinônimo de exagero, de “politicamente correto demais”, de “mimimi”. O que antes era resistência virou chacota.
Essa deturpação não é inocente. Ela faz parte de uma estratégia para deslegitimar movimentos progressistas. Ao transformar um termo de empoderamento em motivo de escárnio, busca-se silenciar vozes e manter o status quo. A caricatura da “cultura woke serve para justificar a inação e perpetuar privilégios, minando avanços em equidade e inclusão.
Nos Estados Unidos, essa narrativa tem sido usada para atacar políticas de diversidade e inclusão. No Brasil, a dinâmica é semelhante — e dolorosamente evidente. O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado por seguranças em um supermercado em Porto Alegre, escancarou o racismo estrutural que permeia nossas instituições. A repercussão obrigou empresas a se posicionarem, mas as iniciativas de inclusão logo foram rotuladas como woke, e atacadas como discriminação reversa.
Programas afirmativos, cotas, políticas de diversidade — tudo isso passou a ser visto, por alguns, como exagero. A retórica da “cultura woke” virou escudo para manter estruturas de poder intactas. Nas organizações, celebra-se a diversidade no discurso, mas na prática ela é frequentemente sabotada. A crítica à “cultura woke” vira desculpa para excluir, marginalizar e perseguir quem ousa questionar normas estabelecidas.
No fundo, a pergunta que se impõe é: quem se beneficia dessa distorção? A resposta é clara: os grupos hegemônicos cisheteronormativos. Ao descredibilizar o termo woke, esses grupos mantêm seus privilégios e silenciam vozes dissidentes. O chamado ao despertar é transformado em instrumento de adormecimento da consciência social.
Essa é a ironia cruel: aquilo que nasceu como símbolo de resistência vira ferramenta de opressão. O racismo institucional é sofisticado. Ele não se limita a atos explícitos — opera em camadas sutis, inclusive na apropriação de palavras e símbolos. Por isso, a luta por justiça exige vigilância constante. É preciso stay woke — no sentido mais profundo e original do termo — para resistir à apropriação e reafirmar o verdadeiro significado da igualdade.