O artigo 5º, inciso I da Constituição Federal preconiza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Como é cediço, trata-se de mera igualdade formal pois a consagração do aludido princípio na Lei Maior não garante, efetivamente, as condições imprescindíveis para percepção de tratamento isonômico entre pessoas de gêneros distintos, de modo peculiar à igualdade substancial.
Ao constatar a presença de mecanismos que normalizam diferenças infundadas no tratamento de pessoas de gêneros diversos, o IPEA (Atlas da Violência 2025)1 classificou a dinâmica como legítimo fenômeno estrutural, restando demonstrada a insuficiência de estratégias implementadas de enfrentamento da violência contra a mulher.
O Mapa da Segurança Pública 2025, por seu turno, consignou aumento no índice de violência contra a mulher, referindo-se à presença de quatro feminicídios por dia no Brasil (aumento de 0,69%).2
Atente-se: não se trata de fantasia, ficção e muito menos questão ideológica, mas singela verificação do mundo empírico. Em tempos complexos nos quais vivemos, onde também algoritmos ditam regras, posturas e incitam desejos de consumo, consistindo o último no maior escopo do liberalismo econômico, tempos de radicalismos e, por que não mencionar, de ignorância cabal de princípios éticos, muitas desigualdades estruturais e afronta a direitos humanos são minimizadas, quando não refutadas ou mesmo intituladas, equivocadamente, como “privilégios” ou “práticas nocivas ao bem comum , conforme interesse majoritário da população”, com deturpação de termos cunhados de modo legítimo , tais como “woke”, como brilhantemente Bruce Denner de Melo Braz, na coluna Encruzilhadas Organizacionais deste mesmo periódico, nos elucidou3. Outra expressão reside na utilização, de modo pejorativo, do termo “identitarismo”(no sentido de ação referente ao agrupamento humano por características comuns, como etnia, gênero, orientação sexual, para defesa de seus direitos e visibilização de demandas sociais, quando utilizada para representação de fenômeno de gestão capitalista , o qual fragmenta os movimentos sociais e impede uma ação de política conjunta).
A força dos movimentos de massa, resultante especialmente da má utilização de redes sociais para repúdio às minorias e seus direitos -não olvidando-se que a população brasileira tem percentual mais elevado de mulheres, o que se correlaciona aos direitos às mesmas correspondentes – tais como os autodenominados “masculinistas”, onde há quem apregoe a necessidade de defesa do “direito dos homens vítimas de mulheres, especialmente em relações familiares”, é inegável e extremamente deletéria ao bem comum.
Urge rememorar que vivemos em um Estado Democrático de Direito que tem, dentre seus fundamentos, justamente o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º , inciso III da CF/88), o qual serve de piso para a concepção de tratados internacionais de direitos humanos, tratados esses, consoante o douto entendimento da professora Flávia Piovesan, que ostentam força de normas constitucionais, em decorrência do artigo 5º, parágrafo 2º da CF/88:
“…há de se interpretar o disposto no artigo 5º , parágrafo segundo do texto que, de forma inédita, tece a interação entre o Direito Brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. Ao fim da extensa Declaração de direitos enunciada pelo artigo 5º , a Carta de 1988 estabelece que os direito e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional”.4(grifos nossos)
Podemos mencionar como tratados internacionais que integram nosso ordenamento jurídico- sem que olvidemos a propósito o posicionamento do STF5, no sentido de considerar os tratados de direitos humanos como normas supralegais, superiores à legislação infraconstitucional, mas em grau hierarquicamente subalterno em relação à Carta Magna 6 – e que dão supedâneo à defesa dos direitos das mulheres , destacados em consequência de desigualdades estruturais advindas de distinções no tratamento entre gêneros, como correspondendo à Declaração de Pequim, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) da ONU, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) da OEA, sem prejuízo de outros instrumentos.
A Lei Maria da Penha (Lei 11340/06) foi promulgada como fruto de condenação do Estado Brasileiro por inobservância dos ditames da Convenção Americana de Direitos Humanos, por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). E a Ação Declaratória de Constitucionalidade 19, julgada pelo STF nos idos de 2012, patenteou a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, especialmente nos artigos 1º, 33 e 41 do referido diploma legal, ponderando a vulnerabilidade histórica e propagação crescente da violência doméstica.
Mulheres são discriminadas e desvalorizadas nos mais variados âmbitos das relações sociais em decorrência da cultura patriarcal, identificada com seriedade e profundidade por antropólogos, sociólogos, psicólogos, filósofos, juristas, operadores do direito, dentre outros profissionais. Suas expressões verbais e manifestações de vontade são ignoradas corriqueiramente, em filas, vias públicas, transporte coletivo, estabelecimentos comerciais e de lazer, no trabalho, em reuniões de condomínio e até mesmo em espaços públicos. No âmbito doméstico e familiar, sofrem rotineiramente violências múltiplas.
No entanto, essa performance não abstrata, advinda da cultura que nos permeia, em momento algum representa salvo conduto para aniquilação da necessidade de adoção de posturas éticas, com observância de princípios e normas vigentes, inclusive valoração ajustada de provas em procedimentos judiciais, tampouco justifica hipotética premissa de que mulheres seriam isentas de falhas ou estariam “sempre corretas”. Quem adotar tal postura restará comprometido, de modo inarredável, com a parcialidade e o radicalismo.
A assertiva é essencial quando nos deparamos, rotineiramente, com profissionais do direito que vitimizam homens e apregoam a necessidade de normas para “proteção dos direitos dos homens em relações familiares”.
Os instrumentos processuais previstos na legislação especial e tratados internacionais, bem como implementação de políticas públicas, destinam-se à proteção de direitos humanos das mulheres, com incentivo à aproximação de igualdade substancial. A incidência cogente do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021 do CNJ nos julgamentos pelo Poder Judiciário não se aparta dessa sistemática, leia-se, absolutamente lídima.
Então, necessitaríamos de um “direito dos homens”? A negativa se impõe frente à conjuntura social pela naturalização das desigualdades no exercício de poder, oportunidades e direitos, entre homens e mulheres, de modo secular.
07Notas
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[1] www.ipea.gov.br, Atlas de Violência 2025, acessado em 01/10/2025;
[2] www.cnnbrasil.com.br, acessado em 01/10/2025;
[3]MELO BRAZ, Bruce Denner de, “Woke: Da Consciência à Caricatura”, Coluna Encruzilhadas Organizacionais, 26 de setembro de 2025, www.magis.agej.com.br, acessado em 30/09/2025;
[4] PIOVESAN, Flávia, “A Constituição de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos”, www.pge.sp.gov.br, acessado em 30/09/2025;
[5] ADPF 708 , julgada pelo STF em julho de 2022, Rel Min Luís Roberto Barroso, considerando hierarquia supralegal de Tratado Internacional;
Referências
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1- www.ipea.gov.br, Atlas de Violência 2025, acessado em 01/10/2025;
2- www.cnnbrasil.com.br, acessado em 01/10/2025;
3- MELO BRAZ, Bruce Denner de, “Woke: Da Consciência à Caricatura”, Coluna Encruzilhadas Organizacionais, 26 de setembro de 2025, www.magis.agej.com.br, acessado em 30/09/2025;
4- PIOVESAN, Flávia, “A Constituição de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos”, www.pge.sp.gov.br, acessado em 30/09/2025;
5- ADPF 708 , julgada pelo STF em julho de 2022, Rel Min Luís Roberto Barroso, considerando hierarquia supralegal de Tratado Internacional;