Introdução
Em um mundo em que pessoas, empresas e patrimônios transitam entre países com a mesma naturalidade com que trocam e-mails, os conflitos também se tornaram transnacionais. É nesse ambiente que a mediação e os mecanismos de ADR (Alternative Dispute Resolution) deixam de ser alternativas “soft” para se tornarem ferramentas de engenharia jurídica: quando bem desenhadas, permitem construir acordos executáveis em múltiplas jurisdições, com custos e prazos inferiores aos do litígio tradicional e, sobretudo, com maior adesão voluntária.
Ainda assim, muitos acordos naufragam porque foram negociados apenas sob a ótica do mérito, sem uma porta de saída clara para execução onde estão as pessoas e os ativos. Este artigo propõe um roteiro narrativo — da preparação à formalização — para transformar a mediação cross-border em ponte segura entre o consenso e a execução, tanto em matérias de família internacional quanto em disputas civis/empresariais.
1) O ponto de partida: pensar a execução antes do mérito
Todo caso cross-border começa com três perguntas: (i) onde estão as pessoas e os bens? (ii) quais foros podem decidir? (iii) qual lei regerá o mérito?. Essas respostas moldam a estratégia de mediação. Se o patrimônio relevante está na Espanha, a execução deverá dialogar com o sistema espanhol; se a obrigação será cumprida por uma empresa sediada no Texas, o acordo precisa “falar” com a prática forense local.
A regra de ouro é simples: planeje a execução antes de negociar. Isso orienta decisões aparentemente periféricas — idioma do acordo, forma de assinatura, necessidade de tradução juramentada, indicação de contas bancárias/IBAN, escolha de escrow agent, eleição de foro de execução, ou conversão do settlement em laudo arbitral por consentimento (consent award). Um acordo tecnicamente impecável, mas que não se converte em título executável no país em que residem os ativos, é um êxito apenas aparente.
2) Arquitetura processual: do “onde” ao “como”
Escolha institucional e mediadores
Para disputas comerciais e societárias, centros como a ICC (International Chamber of Commerce – Câmara de Comércio Internacional), o ICDR/AAA (International Centre for Dispute Resolution, braço internacional da American Arbitration Association), o CPR (International Institute for Conflict Prevention & Resolution) e o SIMC (Singapore International Mediation Centre) e o SIAC (Singapore International Arbitration Centre, parceiro do SIMC no protocolo Arb-Med-Arb) oferecem regulamentos, listas de mediadores com fluência cultural/linguística e modelos de cláusulas escalonadas (negociação – mediação – arbitragem). Em família internacional, a co-mediação (mediador jurídico + mediador com formação em psicologia/infância) é frequentemente decisiva, especialmente em subtração internacional e guarda compartilhada multinacional.
Formato e idioma
O virtual first deixou de ser exceção: sessões remotas com salas privadas (caucus), trilhas de tradução simultânea e protocolos de segurança digital reduzem assimetrias e custos. É prudente pactuar versões paralelas do acordo (p. ex., português e inglês), com cláusula de prevalência e previsão de tradução juramentada já na assinatura.
Confidencialidade e privilégio
Em ambientes multi-jurisdição, a confidencialidade da mediação pode ter variações. O Uniform Mediation Act (EUA) e estatutos estaduais oferecem proteção probatória em alguns locais; no Brasil, a Lei 13.140/2015 e o CPC estabelecem deveres de sigilo. O acordo deve alinhar expectativas sobre o uso (ou não) de informações produzidas na mesa de mediação, preservando exceções de ordem pública (proteção de crianças, integridade do sistema financeiro, etc.).
3) As três portas de executabilidade
(A) Convenção de Singapura (2019):
Quando disponível, é a rota mais direta para execução de acordos internacionais resultantes de mediação. O desenho documental importa: identificar partes e obrigações com precisão; comprovar que o acordo “resultou de mediação” (declaração do mediador/centro); e observar formalidades locais de assinatura. É sensato indicar competência para execução nos países onde haja bens, já no corpo do instrumento.
(B) Consent award na arbitragem (Arb-Med-Arb):
Onde a Convenção de Singapura não é opção ou sua adoção é incerta, o protocolo Arb-Med-Arb resolve: as partes submetem a disputa à arbitragem, interrompem para mediar e, se houver acordo, solicitam que o tribunal converta o settlement em laudo arbitral por consentimento. O resultado ganha exequibilidade internacional pela Convenção de Nova Iorque (1958). É particularmente eficiente em B2B, societário, transferências de quotas, obrigações de fazer e distribuição de ativos com múltiplas etapas.
(C) Homologação judicial estratégica:
Em família (guarda, alimentos, mudança de residência internacional), muitas jurisdições exigem chancela judicial para proteger o interesse de menores. No Brasil, acordos estrangeiros podem ser homologados no Superior Tribunal de Justiça (STJ); acordos domésticos de mediação podem receber força executiva por meio de jurisdição voluntária. Em arranjos UE/EUA/LatAm, verifique exequatur local, tratados bilaterais e, nos EUA, a lógica de full faith and credit entre estados, além de estatutos uniformes como a UCCJEA (Uniform Child Custody Jurisdiction and Enforcement Act, que padroniza competência e execução de decisões de guarda/visitação entre estados) e a UIFSA 2008 (Uniform Interstate Family Support Act – versão 2008, que rege o estabelecimento, execução e modificação de ordens de alimentos/pensão entre estados).
4) Conteúdo mínimo de um acordo que “executa”
A narrativa da sessão de mediação deve desembocar em um documento com mecânica operacional clara:
- Identificação completa das partes (conforme passaporte) e dos ativos afetados.
- Base procedimental: declarar que o pacto é resultante de mediação (datas, centro, mediador) e indicar o mecanismo de enforcement (Singapura, consent award ou homologação).
- Objeto e obrigações: valores, moeda, cronograma, contas/IBAN, escrow e gatilhos de liberação; obrigações de fazer (transferências, entrega documental, renúncias) com prazos e marcos objetivos.
- Lei aplicável e foro competente (ou sede da arbitragem).
- Cláusula de idiomas (versões paralelas, prevalência) e assinaturas qualificadas (inclusive eletrônicas conformes à jurisdição de execução).
- Garantias e covenants: cooperação para traduções, apostilamentos, comunicações a bancos e registros; abstenção de litígios paralelos; multas e step-in remedies em caso de inadimplemento.
- Proteção de dados e sigilo, em diálogo com GDPR e legislação local.
- Cláusulas infantis (quando houver menores): guarda, calendário multinacional, passaportes e consentimentos de viagem, método de resolução de microconflitos futuros (mediador de prontidão ou parenting coordinator).
5) Casuística comentada
Família – subtração internacional (Haia/1980)
A mediação pode evitar decisões binárias de retorno e construir planos de transição com cronogramas de visitação, rateio de custos de viagem e medidas de estabilização escolar. A prática recomenda co-mediação binacional e redação voltada à recepção pela Autoridade Central, incluindo anexos logísticos (rotas de voo, janelas de férias, calls semanais).
Partilha internacional de bens
Ao lidar com imóveis em dois países e aplicações em um terceiro, a eficácia depende de um mapa de execução: onde se registra a transferência? Qual cartório exige tradução/apostila? É necessário escrow para consolidar venda e distribuição? O acordo deve encadear etapas com condições objetivas (ex.: “Liberação do escrow com a matrícula/registro n.º X apostilado e entregue em Y dias”).
B2B e joint ventures
Em desinvestimentos e reestruturações, o consent award costuma ser superior a simples confissão de dívida: converte um consenso negocial em decisão arbitral com circulação global. Além disso, permite inserir obrigações de fazer (entrega de know-how, transferência de marca, cessão de software) com tutelas de urgência arbitrais para o caso de descumprimento.
6) Técnicas de condução que aumentam a taxa de cumprimento
- Preparação escrita enxuta e objetiva: briefs paralelos com linhas do tempo, inventário de ativos e BATNA (Best Alternative to a Negotiated Agreement — melhor alternativa caso não haja acordo) / WATNA (Worst Alternative to a Negotiated Agreement — pior cenário caso não haja acordo).
- Reality-testing de executabilidade em caucus: “Como este termo se executa em Madrid se a outra parte não cumprir? Quem assina? Qual o prazo do registro?”
- Pacotes condicionais: “Se o pagamento ocorrer em 60 dias, libera-se a renúncia recíproca; se não, a controvérsia segue à arbitragem com custas a cargo do inadimplente”.
- Cronograma pós-acordo: checklist de 30-60-90 dias prevendo traduções, apostilas, registros, intimações bancárias e arquivos digitais para execução.
- Cultura e linguagem: reduzir jargão local, explicar institutos (p. ex., punitive damages não se transmitem automaticamente a outras jurisdições), e evitar ambiguidade em termos usuais (e.g., “custas” ≠ “fees” em todos os sistemas).
7) Três armadilhas recorrentes — e antídotos
Acordos “românticos” sem porta de execução: Foco no mérito, esquecimento do título. Antídoto: combinar desde a abertura da mediação qual mecanismo de enforcement será utilizado (Singapura, consent award ou homologação) e redigir para esse destino.
Cláusulas financeiras vagas: “Pagará valor oportunamente” não executa. Antídoto: valores certos, moedas definidas, IBAN/SWIFT, escrow, cronogramas e multas.
Conflito de versões e traduções: Divergências linguísticas geram litígios colaterais. Antídoto: versões paralelas, declaração de prevalência, tradução juramentada e glossário de termos sensíveis quando necessário.
Conclusão
A mediação e os demais mecanismos de ADR em disputas cross-border só expressam todo o seu potencial quando vistos como projetos de engenharia de execução. Isso significa antecipar a porta de enforcement, escolher com critério o ambiente institucional, redigir obrigações operacionais (e não apenas compromissos vagos) e assegurar que o pacto seja reconhecível e executável nos países relevantes.
Em família, essa abordagem tende a diminuir fricções e a proteger melhor crianças e cuidadores, criando rotinas realistas e verificáveis. Em B2B e societário, converte consenso em ativo jurídico circulável, reduzindo incerteza e custo de capital. Em ambos os mundos, a mensagem é a mesma: um bom acordo é aquele que cumpre e executa. E, no contexto transnacional, cumprir e executar exige projeto, não improviso.
Referências
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Brasil – Leis e normas
Brasil. Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação).
Brasil. Código de Processo Civil (2015), arts. 165-175 (autocomposição e mediadores).
Brasil. Lei nº 9.307/1996 (Arbitragem), com alterações da Lei nº 13.129/2015.
Tratados e instrumentos internacionais
Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards (New York Convention, 1958).
United Nations Convention on International Settlement Agreements Resulting from Mediation (Singapore Convention, 2019) – Guide to Enactment e Explanatory Notes da UNCITRAL.
Hague Convention on the Civil Aspects of International Child Abduction (1980) – materiais do Hague Conference on Private International Law (HCCH).
UNCITRAL Model Law on International Commercial Mediation and International Settlement Agreements Resulting from Mediation (2018).
Estados Unidos – instrumentos uniformes e referências
Uniform Mediation Act (UMA) – texto-modelo e notas oficiais.
Uniform Child Custody Jurisdiction and Enforcement Act (UCCJEA).
Uniform Interstate Family Support Act (UIFSA) 2008 – guias de aplicação interestadual.
Doutrina e leituras complementares
Moses ML. The Principles and Practice of International Commercial Arbitration: Third Edition. 3rd ed. Cambridge University Press; 2017.
Nolan-Haley, Jacqueline M., Mediation: The ‘New Arbitration’. Harvard Negotiation Law Review, Forthcoming, Fordham Law Legal Studies Research Paper No. 1713928.
KOVACH, Kimberlee K. Mediation: Principles and Practice. 3. ed. [S.l.]: Foundation Press, 2004. 624 p. ISBN 978-0-314-15022-6.
Susskind, R. Online Courts and the Future of Justice. Oxford University Press.



