Categorias como “luto” e “morte” são apresentadas por diversas lentes. Interessa-nos, nesse amplo campo de possibilidades interpretativas, analisar seu caráter público, que, inclusive, se articula à produção e constituição de outra premissa genuinamente política: uma vida legítima. Trata-se, nesse prisma, de uma trama que, ao mesmo tempo, revela a possibilidade de existir e as condições de impossibilidade compostas pelas camadas políticas, sociais, econômicas e culturais que não apenas desprezam vidas marginalizadas, mas também se beneficiam da supressão generalizada de sua humanidade.
O necropoder, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe (2018b) — isto é, essa política que não só organiza e disciplina o corpo marcado como inimigo, mas incide, de formas multiarticuladas, para reivindicar a sua morte —, faz com que esse corpo matável seja significado como um “farrapo humano” (Mbembe, 2018a).
Ele não constitui uma humanidade completa diante de uma Soberania que não protege ninguém — nem mesmo aqueles que ela mesma aponta, para construir legitimidade belicosa, como heróis, pois eles também são dispensáveis diante de seu interesse perverso pela continuidade do poder. O farrapo humano é um vestígio de humanidade perdida pela predação dos sistemas políticos que marginalizam e se nutrem da precariedade que eles mesmos fabricam.
Mas o que é um farrapo, senão aquilo que foi, mas que agora não passa de uma figura degradada, arruinada, irreconhecível, estragada, uma entidade que perdeu sua autenticidade e sua integridade? O farrapo humano é aquilo que, a despeito de apresentar aqui e ali uma aparência humana, está tão desfigurado que se encontra, ao mesmo tempo, no aquém e no cerne do humano. É infra-humano.(Mbembe, 2018a, p. 237).
É importante considerar, nesses termos, que a violência não é um acidente, mas uma implementação profunda das organizações da realidade que marca o “outro” como uma presença tão insólita que a sua execução se torna, simultaneamente, exigida e celebrada por grupos hegemônicos que se beneficiam dessa carnificina. Ao ser apresentada como eficiente, essa mesma lógica mascara o fato de que os sistemas bélicos que a sustentam transformam todos aqueles que se desviam dos paradigmas normativos das política de morte em alvos.
Vale ressaltar que a exposição generalizada do corpo farrapo intensifica as normas de letalidade que, ao incidirem sobre sua presença, banalizam nossas percepções e neutralizam a barbárie. No interior dessa superexposição do corpo destruído opera-se uma dupla lógica: a manifestação da Soberania que faz morrer e, simultaneamente, a normalização dessa morte como recurso tecnopolítico. Assim, a imagem não é neutra, mas uma tradução, um vetor das normas genocidas que antecipam, participam e qualificam os produtos da cena de violação. Ela revela que o corpo farrapo é indiciado e, como excedente da humanidade, suscetível à Soberania do poder que mata para ampliar sua autoridade, instituída pela lógica da guerra, na qual a diferença torna-se razão para a execução. O “farrapo humano” expõe uma crise ética instaurada pela necropolítica: a impossibilidade de coexistência e cuidado, pois o outro, transmutado em inumano, é fadado à morte. No interior do necropoder, o luto é administrado pelos registros de humanidade que não alcançam aqueles que, nos limites de um ethos discrimatório e precarizador, nunca foram considerados vidas.
Referências
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MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.



