Entre a Clareza e o Cuidado: O Legal Design como Dever e Desafio do Novo Direito

Entre a Clareza e o Cuidado: O Legal Design como Dever e Desafio do Novo Direito

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O Declínio do Juridiquês: Diagnóstico da Ineficiência e Amparo Constitucional

O Direito brasileiro vive uma contradição: fala em Justiça, mas muitas vezes a expressa em uma linguagem que poucos compreendem. O “juridiquês”, repleto de termos arcaicos e frases labirínticas, há muito deixou de representar erudição. Hoje, é símbolo de ineficiência e exclusão social.

Essa barreira linguística é grave. Ela impede que cidadãos compreendam seus direitos e consome tempo precioso do Judiciário. No entanto, a clareza sempre encontrou respaldo na Constituição. Os objetivos fundamentais da República, previstos no artigo 3º, incisos I, III e IV[1], tratam da construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da redução das desigualdades. A comunicação acessível é um instrumento para alcançar esses objetivos.

Felizmente, essa cultura de complacência com o texto obscuro está em declínio. A Câmara dos Deputados deu um passo histórico ao aprovar o Projeto de Lei nº 6.256/19[2], que institui a Política Nacional de Linguagem Simples. A proposta rompe com o paradigma da opacidade e estabelece a clareza como dever central da comunicação pública.

O Pilar Legal da Simplicidade: Do Legislativo ao Judiciário

A aprovação do PL 6.256/19 não é um evento isolado, mas o desfecho de um movimento que já vinha sendo construído. A Lei nº 13.460/2017, que trata dos direitos do usuário de serviços públicos, determinou, em seu artigo 5º, inciso XIV[3], o uso de linguagem simples e compreensível, livre de siglas e jargões desnecessários.

O Poder Judiciário também tem sido protagonista nessa transformação. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem incorporando o princípio da clareza em suas normas e recomendações:

  • Governança e Comunicação: A Resolução CNJ nº 347/2020[4] prevê que documentos e comunicados adotem linguagem simples e elementos que favoreçam a compreensão.
  • Apoio Institucional: O Pacto Nacional pela Linguagem Simples[5] e a Recomendação CNJ nº 144/2023[6] reforçam essa diretriz, convocando magistrados e servidores a tornar o Direito acessível a todos.

Assim, Legislativo e Judiciário convergem em uma mesma direção. A comunicação jurídica deve ser clara, compreensível e orientada à experiência do destinatário.

O Legal Design como Nova Exigência da Comunicação Jurídica

Com a iminente sanção do PL 6.256/19, a Linguagem Simples passa a integrar uma política nacional obrigatória. Junto com ela, ganha força o Legal Design, uma abordagem que une design, direito e empatia para repensar a forma como as informações jurídicas são estruturadas e apresentadas.

O projeto de lei também prevê que a administração pública organize suas comunicações de forma esquemática sempre que possível, recorrendo a recursos como listas, tabelas e gráficos para facilitar a compreensão do conteúdo.

Essa previsão legitima o uso de técnicas de design na comunicação jurídica, reconhecendo que a estrutura, o layout e a clareza visual são ferramentas de efetividade e cidadania. O Legal Design aplica princípios de design thinking e da ciência cognitiva para reduzir o esforço mental do leitor, melhorar a compreensão e acelerar a tomada de decisão.

Em um sistema judicial historicamente moroso, em que o artigo 5º, inciso LXXVIII[7], da Constituição Federal garante o direito à duração razoável do processo, o Legal Design surge como uma ferramenta concreta de eficiência e transparência.

O Novo Padrão de Eficácia e a Responsabilidade do Advogado

As novas diretrizes legais e institucionais redefinem o papel do advogado. O profissional que insiste no “juridiquês” tradicional não apenas comunica mal, mas também se distancia do comando normativo contemporâneo.

Adotar o Legal Design é, hoje, um ato de responsabilidade profissional. É compreender que as formas importam: o modo como as teses jurídicas são organizadas, simplificadas e apresentadas influencia diretamente a compreensão e a decisão.

Além disso, o Legal Design concretiza um valor maior, que é a inclusão. A Agenda 2030 da ONU[8] (ODS 10) reforça a linguagem acessível como meio de reduzir desigualdades. Ao simplificar e redesenhar documentos, o advogado transforma o Direito em algo participativo e compreensível, aproximando o cidadão da Justiça.

A Crítica Necessária: Nem Tudo São Flores

Apesar do otimismo, é fundamental manter os pés no chão. O Legal Design exige cautela, e o risco reside no mau uso e na superficialidade. Algumas críticas merecem atenção.

a) Risco do Enfeite: A crítica mais recorrente é a do Legal Design usado como mero adorno, o que alguns chamam de “Visual Law de Carnaval”. O uso excessivo de cores, ícones e gráficos sem funcionalidade distrai o leitor, aumenta a carga cognitiva e pode tornar o processo mais lento.

b) Precarização da Fundamentação: Existe o receio de que, ao buscar simplicidade, advogados e magistrados comprometam a fundamentação jurídica. Isso é um equívoco. O Legal Design deve complementar e fortalecer a argumentação técnica, jamais substituí-la.

c) Falta de Padronização: Como a prática é recente, ainda há resistência cultural e ausência de critérios uniformes nos tribunais. A consolidação desse novo paradigma depende do tempo e da demonstração prática de sua eficácia.

O sucesso do Legal Design depende de sua aplicação como metodologia e não como ornamentação. O foco deve estar sempre no usuário e na funcionalidade, garantindo que a clareza não ocorra à custa da profundidade.

Conclusão: Clareza com Responsabilidade

O movimento pela clareza e pela reformulação da comunicação jurídica é hoje um compromisso institucional, constitucional e ético. Ele nasce da Constituição, é fortalecido pelo Judiciário e consolidado pelo Legislativo.

Contudo, a empolgação com a simplicidade não deve apagar a necessidade de rigor técnico. O Legal Design é uma ferramenta poderosa, mas exige critério, propósito e equilíbrio. A clareza não é um atalho para a simplificação excessiva, e sim um caminho para uma Justiça mais acessível e eficiente.

O desafio da advocacia contemporânea é justamente esse: comunicar de forma clara, sem empobrecer o conteúdo. O Legal Design representa o novo padrão de excelência, mas também um chamado à reflexão crítica. O futuro do Direito fala a língua da clareza, e cabe a nós garantir que essa clareza continue iluminando, e não ofuscando, a profundidade jurídica.

 

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Juliana Fátima de Aquino Moreira é advogada, professora e pesquisadora, mestre e doutoranda em Direito pela UFMG e membro da Comissão de Marketing Jurídico da OAB/MG.

 

Referências

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1. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.

2. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara aprova projeto que exige uso de linguagem simples na comunicação de órgãos públicos. Brasília, DF, [21 out. 2025]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1214375-camara-aprova-projeto-que-exige-uso-de-linguagem-simples-na-comunicacao-de-orgaos-publicos. Acesso em: 3 nov. 2025.

3. BRASIL. Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jun. 2017

4. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 347, de 13 de outubro de 2020. Institui a Política de Governança das Plataformas Digitais do Poder Judiciário e dispõe sobre o uso de linguagem simples e acessível. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 14 out. 2020.

5. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Brasília, DF, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 3 nov. 2025.

6. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Recomendação nº 144, de 31 de agosto de 2023. Recomenda o uso da Linguagem Simples pelos órgãos do Poder Judiciário. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 1º set. 2023.

7. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.

8. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 10: Reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles. Nações Unidas Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/10. Acesso em: 3 nov. 2025.

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