Abandono digital e sharenting no direito de família brasileiro: entre o dever de cuidado e o abuso da autoridade parental

Abandono digital e sharenting no direito de família brasileiro: entre o dever de cuidado e o abuso da autoridade parental

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RESUMO

O artigo examina criticamente dois fenômenos emergentes no Direito de Família: (i) o abandono digital — a negligência dos pais na supervisão da vida on-line dos filhos — e (ii) o sharenting — a superexposição de crianças e adolescentes nas redes sociais por seus próprios responsáveis. Partindo do princípio do melhor interesse, do ECA, da LGPD e do Marco Civil da Internet, analisa-se a responsabilidade civil e as respostas judiciais, com destaque para precedentes do STJ e decisões recentes que coíbem a superexposição. Defende-se que ambos os comportamentos podem configurar abuso do poder familiar, levando até mesmo na responsabilização dos responsáveis. Ao fim, propõem-se parâmetros práticos de parentalidade digital responsável.

INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos a vida familiar tem migrado para o ambiente digital. Se antes a proteção das crianças e adolescentes se concentrava no espaço físico, hoje é indissociável da esfera on-line.

O Abandono Digital resume-se na negligência dos pais em relação aos filhos na esfera virtual. Cabe salientar que a negligência é a falta de atenção, monitoramento e descuido. Sim, os pais, que têm o dever de cuidar, proteger e educar os filhos segundo nossa Constituição da República, também devem estender estes mesmos cuidados em relação ao que os filhos fazem quando estão conectados. Os tempos mudaram e os perigos aos quais fomos expostos nas ruas, agora são praticados através de uma tela de celular. É preciso ter em mente que as crianças e adolescentes são vulneráveis e frágeis, suscetíveis à seduções, convites indiscretos  ou perigosos, bem como desafios que podem levar à morte – como já aconteceu no Brasil.

O Shareting, – termo em inglês que combina as palavras “share” e “parenting” – por sua vez, não é um termo tão conhecido no Brasil. Contudo, vem causando grandes traumas e problemas às crianças. Consiste nos pais utilizarem a internet, especialmente as redes sociais, para documentar aspectos da vida dos filhos, experiências da maternidade ou paternidade.  No entanto, ao exercerem essa liberdade, os pais ou responsáveis legais podem expor indevidamente informações pessoais de menores e colocá-los ainda em situação de vulnerabilidade.

Nesse contexto, surgem dois problemas jurídicos correlatos: a omissão dos pais em vigiar e orientar (Abandono digital) e a hiperexposição voluntária de filhos (Sharenting). Ambos tensionam o dever jurídico de cuidado previsto no artigo 227 da Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e nas normas de proteção de dados.

 

MARCOS NORMATIVOS E O “DEVER DE CUIDADO”

O ECA assegura às crianças e adolescentes a inviolabilidade da imagem, da identidade e da integridade psíquica e moral (art. 17). O Marco Civil da Internet proclama direitos à privacidade e proteção de dados, disciplinando responsabilidades de provedores. Em conjunto, tais diplomas positivam um mínimo ético-jurídico de cuidado digital que se projeta sobre o exercício da autoridade parental.

No âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou a centralidade do cuidado como valor jurídico objetivo no Direito de Família ao reconhecer a possibilidade de compensação por dano moral por abandono afetivo (REsp 1.159.242/SP), em que se estabeleceu a obrigação de indenizar de pai que ignora completa e injustificadamente o filho menor. Embora o caso trate da dimensão afetiva clássica, a razão de decidir — violação do dever legal de cuidado — é transponível ao ambiente digital, donde a pertinência da categoria “abandono digital”.

 

ABANDONO DIGITAL: CONCEITO, ENQUADRAMENTO E CONSEQUÊNCIAS

Abandono digital designa a negligência parental quanto à educação, supervisão e proteção de filhos no uso de tecnologias (dispositivos, redes, jogos, aplicativos), expondo-os a riscos como cyberbullying – que consiste em postagens ofensivas, agressivas, humilhantes e preconceituosas, que causam intimidações e violam a identidade da vítima, aliciamento e coleta abusiva de dados. A doutrina nacional identifica o fenômeno como espécie de omissão ilícita — uma violência por omissão que viola o dever de guarda, educação e companhia no espaço on-line.

O problema é que as condutas egoístas e negligentes de pais que só querem ‘sossego’, podem acarretar graves consequências e danos irreparáveis à criança e ao adolescente, pois, além do uso precoce e excessivo da internet ser prejudicial ao seu desenvolvimento cognitivo, estes sujeitos estão expostos a conteúdos sensíveis ou inadequados para a idade, tais como violência explícita, informações sobre a obtenção e uso de drogas, “brincadeiras” ou jogos desafiadores, vício tecnológico, formas de se machucar e até de realizar suicídio, além do risco de contato e interação com desconhecidos mal intencionados.

Do ponto de vista civil, a omissão culposa que viole o núcleo mínimo de cuidados parentais pode gerar dever de indenizar e medidas tutelares, uma vez que a criança ou adolescente pode ter sua imagem, honra e dignidade prejudicados. A lógica é análoga à do abandono afetivo: comprovada a omissão que vulnera interesse juridicamente tutelado, surge a responsabilidade.

Apesar do tema abandono digital ser novo no Brasil, já temos julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde uma mãe foi condenada a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil, por ter fornecido ao filho o seu computador e o acesso à internet sem a devida precaução com o monitoramento dos atos por ele cometidos na web. O adolescente praticava cyberbulylling em sua própria residência, visto que postava mensagens com teor ofensivo além de fazer montagens fotográficas levianas. Restou demonstrado nesse julgado que houve o abandono digital por parte da mãe, que inclusive confessou não ter conhecimento dos atos praticados pelo filho na internet.

A quebra do dever de cuidado parental ao negligenciar a vida virtual dessas pessoas em formação, pode e deve gerar responsabilização civil pelos danos causados aos filhos e por estes na web, haja vista que crianças e adolescentes não possuem a capacidade de avaliar a gravidade e a proporção que suas atitudes podem tomar no “mundo digital”.

 

SHARENTING: SUPEREXPOSIÇÃO E ABUSO DO PODER FAMILIAR

Sharenting é a prática, por pais ou responsáveis, de divulgar em excesso informações e imagens de filhos, muitas vezes sem consentimento e sem avaliação dos impactos reputacionais, emocionais e de segurança. A literatura recente propõe encará-lo como abuso no exercício da autoridade parental, por violar direitos da personalidade (privacidade, imagem, dados).

A jurisprudência brasileira tem reagido. Em 2021, o STJ assentou que provedores devem remover conteúdo ofensivo envolvendo menor assim que notificados, mesmo sem ordem judicial, por força do regime protetivo do ECA (REsp 1.783.269/MG).

A exposição exagerada de informações sobre crianças representa uma ameaça à intimidade, vida privada e direito à imagem, como dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Somado a isso, todo conteúdo publicado na internet gera dados que, no futuro, podem ser desaprovados pelos filhos, por entenderem que sua vida privada foi exposta indevidamente durante a infância. Houve um caso emblemaático no ano de 1920, onde o ator Jackie Coogan, que interpretou o garoto no filme The Kid (1921), dirigido por Charlie Chaplin, foi explorado pelo menos uma década pelos pais e os processou ao atingir a maioridade.

Os interesses envolvendo os dados das crianças são os mais variados e podem ser utilizados para diferentes finalidades, desde o roubo de identidade, cyberbullying, uso indevido de imagens e vídeos por pedófilos, fins comerciais a outras ameaças à segurança. Dessa forma, a privacidade online é uma garantia de que as futuras gerações possam entrar na sua maturidade livres para construir por elas mesmas suas identidades digitais.

 

CRÍTICA: ENTRE A ROMANTIZAÇÃO DA PARENTALIDADE DIGITAL E O MERCADO DA ATENÇÃO

Há uma normalização perigosa da exposição contínua de crianças — muitas vezes convertendo sua imagem em ativo de engajamento. O discurso do “registro de lembranças” encobre tratamentos de dados desnecessários e a criação de pegadas digitais permanentes. Relatos nacionais apontam que conteúdos de perfis infantis são capturados e republicados em contextos de exploração, evidenciando que o risco não é abstrato. Na última década, muitas crianças se tornaram “influencers” com status de celebridade, por meio de estímulo de familiares e o respaldo de patrocinadores. E os pais – que muitas vezes se aproveitam do retorno financeiro – estão colaborando para a construção de uma personalidade moldada para agradar os seguidores. A criança começa a passar por essa situação desde pequena. Muitas vezes, por trás desse perfil falso pode existir um grande vazio. A exploração dessas crianças por parte dos pais é uma forma de abuso infantil.

 

PARÂMETROS PRÁTICOS DE PARENTALIDADE DIGITAL RESPONSÁVEL (PROPOSTA)

Qualquer compartilhamento deve ser necessário, proporcional e não lesivo à privacidade/imagem. Duvidou? Não poste.

Minimização de dados: Dados de localização; Nome completo da criança; Imagens de filhos não totalmente vestidos; Data de nascimento da criança; Fotos e vídeos ou detalhes sobre outras crianças; Informações sobre a escola que frequenta ou algo que indiretamente possa denunciar a criança, como a imagem dela com uniforme escolar.

Consentimento progressivo: a partir de determinada maturidade, ouvir a criança sobre o que pode ser divulgado; ausente concordância esclarecida, abstenha-se.

Controles técnicos: perfis privados, audiências restritas, desabilitar reconhecimento facial e revisar termos de uso.

 

Referências

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ANDRADE, F. de M. A prática do sharenting sob o olhar do melhor interesse da criança. Revista JRG, 2024.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei n. 14.811, de 12 de janeiro de 2024. Medidas de proteção à criança e ao adolescente e alterações no ECA. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 24 abr. 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.783.269/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 14 dez. 2021.

INSTITUTO ALANA – Criança e Consumo. Lei Geral de Proteção de Dados e sua defesa às infâncias. 2020.

LIMA REIS, M. de. Responsabilidade civil por sharenting na jurisprudência do Brasil. Revista Contemporânea, 2023.

MÃE é responsabilizada por ofensas do filho na web. Revista Consultor Jurídico. 2 de jul. de 2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-jul-02/mae-responsabilizada-cyberbullying-praticado-filho.

OLSSON, G. (Org.). Prática de sharenting preocupa representantes do Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça, 2023.

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