O cuidado com o lar e com os filhos continua a ser quase que, exclusivamente, das mulheres; e mesmo a mulher estando inserida no mercado de trabalho, ainda existe uma parcela das mulheres que dedicam, exclusivamente, a sua vida ao cuidado do lar, dos filhos, e até mesmo dos idosos da família, e até mesmo de familiares com deficiência ou doenças.
Segundo o estudo de políticas para a corresponsabilidade no mundo do trabalho, lançado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome – MDS, no Brasil as mulheres dedicam em média 9,8 horas a mais por semana ao trabalho de cuidado não remunerado do que os homens. E essa carga é ainda maior entre mulheres negras, que chegam a dedicar 22,4 horas semanais, e nas áreas rurais, elas realizam mais que o dobro de horas de trabalhos de cuidado do que os homens, e a diferença de gênero é maior do que nas áreas urbanas; as mulheres realizavam 12,4 horas a mais do que os homens no campo.
Portanto, essa é uma realidade estrutural, que apenas recentemente vem sendo estudada, se constatando a solidão que essas mulheres vivem, que caminha junto com um vazio produzido pela ausência de reconhecimento social, emocional e jurídico do trabalho contínuo e silencioso de quem cuida.
Aquelas que cuidam, cuidado que é essencial para manutenção da vida familiar, permanecem, ainda, invisíveis nos campos emocional, econômico e jurídico.
É verdade que o direito de família teve pequenos avanços, inclusive em decisões recentes já reconhecem que o cuidado do lar deve ser levando em consideração para formação do patrimônio familiar, assim como devem ser indenizadas, no que ficou conhecido como alimentos compensatórios.
Recentemente, ainda, os tribunais passaram a entender e a computar nas pensões alimentícias os cuidados que as mães tem com os filhos.
Esses entendimentos aproximam o Direito da vida concreta das cuidadoras, evitando que a invisibilidade doméstica se transforme em vulnerabilidade jurídica.
Mesmo assim, quando se observa a rotina de mulheres que cuidam de idosos, pessoas doentes ou crianças pequenas, um ponto se destaca: o esgotamento emocional não abre espaço para que elas cuidem de si mesmas. O que leva ao questionamento: Quem cuida de quem cuida?
Há o esquecimento, e não se considera que o princípio do melhor interesse da criança exige que a guarda e a convivência seja pensada também a partir do bem-estar de quem cuida, pois um cuidador exausto tende a sofrer impactos na qualidade do cuidado.
Além disso, ainda, que o Judiciário venha entendendo que deve se observar o trabalho doméstico como financeiramente compensável, na prática, os alimentos ainda são fixados muito aquém do que deveriam ser.
A sobrecarga de cuidados ainda pode ser observada na desigualdade dos cuidados e responsabilidades parentais quanto da fixação da aguarda e a convivência dos pais, mesmo quando se fala da guarda compartilhada observa-se que a mulher sempre ficará responsável pelo maior numero de tarefas com os filhos, e passará a maior parte do tempo com eles; com a justificativa dos pais que eles têm a necessidade de trabalhar, e também devem gozar do descanso para assim poderem manter seu papel de provedor financeiro.
Apesar das mulheres, também, tratarem dos cuidados com idosos ou outros familiares, no adoecimento e envelhecimento essas mulheres se veem privadas do dever de cuidado e assistência entre familiares, o que na pratica significa que no adoecimento e na velhice dessas mulheres elas se veem sozinhas, muitas vezes sendo abandonadas em hospitais e casas de repousos pelas famílias. Aquela que cuida a vida inteira de sua família, no fim da sua vida se veem cuidadas por estranhas. Sim, porque são sempre as mulheres que cuidam de mulheres.
É o que hoje passou-se a denominar como abandono afetivo inverso, ou seja, quando os filhos deixam de prestar assistência aos pais idosos, e que tem sido reconhecido judicialmente; afinal, se quem cuida deve ser protegido, essa proteção deve valer tanto para pais quanto para filhos que exercem cuidado intenso e exclusivo.
A solidão das mulheres cuidadoras pode ser agravada por isolamento forçado, desvalorização, humilhação ou controle emocional, que configura violência psicológica, nos termos da Lei Maria da Penha.
Assim, muitas mulheres que relatam desgaste, e também sobrecarga pelos cuidados familiares podem estar sendo vítimas de manipulação emocional, isolamento social, sobrecarga proposital para impedir autonomia, e controle financeiro.
Portanto, o isolamento pode deixar de ser unicamente um sofrimento íntimo, e caminhar junto com violências tipificadas pela Lei Maria da Penha, sendo cabível medidas protetivas; e no campo do Direito de Família em revisões na convivência e regime da guarda.
E o que dizer das mulheres cuidadoras que enfrentam um divórcio? Nesse caso, elas tendem a enfrentar obstáculos maiores para retornar ao mercado de trabalho, por ano, às vezes décadas, de dedicação exclusiva ao lar; quando conseguem retornar ao mercado de trabalho, por falta de qualificação profissional.
Conforme o estudo citado, 50% das mulheres deixam o mercado de trabalho até dois anos após o nascimento do primeiro filho, enquanto os homens, em média, aumentam seus rendimentos nesse mesmo período.
Diante disso, cabe ao Judiciário considerar a redução da capacidade de inserção imediata no mercado, a necessidade de alimentos transitórios ou compensatórios, a repartição equilibrada das responsabilidades parentais, a proteção da saúde mental da cuidadora. O que está ainda engatinhando no Judiciário.
Já se caminhou ao ponto de entendermos, advogados familiaristas e Judiciário, que a família contemporânea não se sustenta apenas em vínculos jurídicos, mas em vínculos de cuidado. O trabalho de quem alimenta, educa, acolhe emocionalmente, organiza o lar e atende às necessidades de crianças e idosos é tão essencial quanto o trabalho remunerado, que deve receber igual proteção jurídica.
O desafio é fazer com que o Judiciário coloque em prática o que já vem sendo reconhecido juridicamente, sem grandes batalhas jurídicas: a família só existe porque alguém cuida. E esse cuidado tem valor jurídico.
O reconhecimento da solidão e da sobrecarga das cuidadoras não é apenas um gesto humano, é um compromisso jurídico com a igualdade e com a dignidade de quem sustentou silenciosamente a estrutura familiar; e como afirma a especialista sênior de Gênero e Não Discriminação do Escritório Regional da OIT, Paz Arancibia, “A corresponsabilidade no cuidado é um pilar fundamental para a construção de sociedades mais justas e igualitárias. Sem ela, não há como garantir trabalho decente para todas as pessoas”.
Referências
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Giraldo, Luísa. A Solidão Invisível da Vida Dedicada a Lar e Família. www.estadao.com.br/saude/solidão-invisível-como-vida-dedicada-ao-lar-afeta-saúde-mental-das-donas-de-casa.
Mulheres dedicam quase 10 horas a mais por semana do que os homens a cuidados não remunerados. www.gob.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/mulheres-dedicam-quase-10-horas-a-mais-por-semana-do-que-os-homens-a-cuidados-não-remunerados.
Mulheres dedicam quase 10 horas a mais por semana ao cuidado não remunerado. gob.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/mulheres-dedicam-quase-10-horas-a-mais-por-semana-do-que-os-homens-a-cuidados-não-remunerados.
Trabalho de cuidados não remunerado impede 708 milhões de mulheres de participar do mercado de trabalho. www.ilo.org/pt-pt/resource/news/trabalho-de-cuidados-não –remunerado-impede-708-milhões-de-mulheres de
Estatísticas de Gênero. Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. www.biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/livros/ pdf



