Introdução
A incorporação de sistemas de Inteligência Artificial (IA), em especial IA generativa, na rotina de escritórios de advocacia deixou de ser uma possibilidade futurista para se tornar infraestrutura de trabalho: geração de minutas, pesquisa jurídica assistida, classificação documental, análise probatória, predição de resultados e automação de fluxos internos.
Esse movimento, porém, coincide com um endurecimento do ambiente regulatório. No Brasil, o Conselho Federal da OAB aprovou a Recomendação n. 001/2024, estabelecendo diretrizes específicas para o uso de IA generativa na prática jurídica, alinhadas ao Estatuto da Advocacia, ao Código de Ética, à LGPD e à legislação processual. No âmbito do Poder Judiciário, a Resolução n. 615/2025 do CNJ instituiu um marco regulatório abrangente para a implementação e uso de IA no sistema de justiça, com princípios, requisitos de transparência, gestão de riscos e governança institucional.
Paralelamente, organismos internacionais como a OCDE, o ISO, o ICO (Information Commissioner’s Office, Reino Unido), a IAPP (International Association of Privacy Professionals) e a União Europeia (por meio de instrumentos como o NIS2 e de frameworks de risco em IA) consolidam um paradigma de regulação ex ante: em vez de aguardar o dano, exigem que organizações implementem estruturas prévias de governança, gestão de risco e accountability em IA
Neste contexto, sustento que escritórios de advocacia precisam implementar programas formais de Governança de Inteligência Artificial não apenas como opção de boa prática, mas como requisito de conformidade ética, regulatória e profissional, se desejarem utilizar IA de forma robusta, confiável e alinhada às exigências da OAB, do CNJ e das melhores práticas internacionais, evitando má utilizando, vieses, decisões humanas amparadas por decisões automatizadas que venham a conter discrepâncias ou discriminações, etc..
2. Marco normativo: OAB, CNJ e referências internacionais de regulação ex ante
A Recomendação n. 001/2024 do CFOAB orienta o uso de IA generativa na prática jurídica, enfatizando três eixos centrais: (i) preservação da independência técnica do advogado; (ii) respeito ao sigilo profissional; e (iii) observância dos direitos fundamentais e da proteção de dados pessoais.
Entre os pontos mais relevantes para a governança de IA em escritórios, destacam-se:
- vedação à delegação da tomada de decisão jurídica à IA mantendo o advogado como responsável final pelo conteúdo das peças, pareceres e estratégias;
- exigência de transparência quanto ao uso de IA, especialmente quando houver potencial impacto sobre direitos de clientes ou terceiros;
- necessidade de avaliar riscos de violação de sigilo, confidencialidade, propriedade intelectual e privacidade, inclusive ao utilizar ferramentas de terceiros em nuvem;
- recomendação de adoção de políticas internas, treinamento e mecanismos de supervisão humana qualificada sobre as saídas geradas pela IA.
Na prática, a Recomendação desloca o debate da pergunta “posso usar IA?” para “de que forma uso IA sem violar deveres éticos e legais?”. Isso é, por definição, uma agenda de governança.
2.2. Resolução n. 615/2025 do CNJ e o efeito indireto sobre a advocacia
A Resolução n. 615/2025 do CNJ estabelece princípios e diretrizes para o desenvolvimento, contratação e uso de sistemas de IA no Poder Judiciário, incluindo: dignidade da pessoa humana, não discriminação, transparência, segurança, rastreabilidade, governança de dados, avaliação de impacto e supervisão humana.
Ainda que a Resolução se aplique formalmente ao Judiciário, ela reconfigura o ambiente de expectativas regulatórias: escritórios que litigam perante tribunais que utilizam IA serão inevitavelmente afetados, demandando capacidade de compreender, questionar e dialogar tecnicamente com esses sistemas (por exemplo, em alegações de violação ao contraditório, à motivação de decisões ou em incidentes de vieses algorítmicos), e claro, possui em seu bojo indicações que são uteis para o exercício da advocacia e seus possíveis efeitos e questionamentos por parte da nossa profissão.
Logo, a implementação de governança de IA em escritórios deixa de ser apenas uma questão de “compliance interno” e passa a integrar uma estratégia de paridade técnica na relação com um Judiciário cada vez mais automatizado, produzindo efeitos em todo ecossistema do escritório, ou seja, colaboradores, softwares, fornecedores, prestadores de serviços e, principalmente, reputação e mitigação de riscos da advocacia, que poderão arruinar a reputação do escritório ou advogado autônomo.
2.3. Padrões internacionais: OCDE, NIS2, ICO, IAPP e ISO
No plano internacional, consolida-se um mosaico de referenciais ex ante para IA e segurança da informação:
- Os Princípios de IA da OCDE (Recommendation of the Council on Artificial Intelligence) promovem IA inovadora e confiável, com respeito aos direitos humanos e valores democráticos, articulando princípios como transparência, robustez e responsabilização.
- Relatórios posteriores da OCDE sobre accountability e gestão de riscos em IA detalham frameworks de risco ao longo do ciclo de vida do sistema, propondo mecanismos para identificar, avaliar, tratar e monitorar riscos técnicos, jurídicos e éticos.
- A Diretiva NIS2 da União Europeia, embora voltada a segurança de redes e sistemas de informação, cria um modelo obrigatório de gestão de risco, governança e reporte de incidentes, com forte ênfase em responsabilidade de dirigentes e controles organizacionais de segurança – parâmetros diretamente aproveitáveis para escritórios que operam com dados sensíveis e sistemas de IA conectados.
- O ICO britânico publicou extensa Guidance on AI and Data Protection, com foco em accountability, DPIA (Data Protection Impact Assessment), fairness, transparência e governança para usos de IA envolvendo dados pessoais.
- A IAPP consolida e difunde boas práticas globais em privacidade, proteção de dados e, mais recentemente, AI governance, enfatizando privacy by design, impacto regulatório e integração entre proteção de dados e governança de IA.
- A norma ISO/IEC 42001:2023, primeira norma internacional de sistema de gestão de IA (AIMS – AI Management System), oferece um framework estruturado para estabelecer, implementar, manter e melhorar continuamente a governança de IA em organizações, tratando de riscos, controles, papéis, responsabilidades, monitoramento e melhoria contínua.
Em síntese, esses referenciais convergem em um ponto: não basta ter IA “funcionando”; é necessário ter IA governada, com políticas, processos, documentação, auditoria e supervisão humana. Para escritórios de advocacia, isso significa institucionalizar uma Governança de IA compatível com padrões globais, adaptada às peculiaridades do serviço jurídico.
3. Por que escritórios de advocacia são um caso sensível de uso de IA
Escritórios de advocacia (e advogados autônomos) apresentam características que os colocam em posição particularmente delicada quando se fala em IA:
- Alto volume de dados sensíveis e sigilosos
Processos judiciais, pareceres, contratos, dados de saúde, dados trabalhistas, segredos industriais, estratégias de negociação, dados criminais: grande parte desses dados é sigilosa ou sensível, protegida por legislação (LGPD, Código de Ética, Estatuto da OAB, leis setoriais). O uso de IA em nuvem, sem governança, pode expor tais dados a riscos de vazamento, reuso indevido, transferência internacional irregular e treinamento indevido de modelos. - Deveres éticos reforçados e responsabilidade pessoal do advogado
Ao contrário de muitas empresas, o advogado responde pessoalmente perante a OAB por violação de sigilo, captação indevida de clientela, propaganda irregular, quebra de confiança ou negligência técnica. A utilização não governada de IA pode gerar:
- peças contaminadas por erros factuais ou “alucinações” não verificadas;
- violação de sigilo ao inserir documentos sensíveis em ferramentas sem contrato adequado;
- reprodução de vieses discriminatórios em análises de risco ou modelos preditivos.
- Interação direta com um Judiciário regulado por IA
Com a Resolução 615/2025 e o avanço da IA generativa em cerca de metade dos tribunais brasileiros, a advocacia passa a litigar em um ambiente em que decisões, minutas e fluxos processuais podem ser auxiliados por IA.CNJ Isso exige capacidade de compreender e eventualmente contestar o uso de IA, inclusive em sede recursal, ações de controle ou incidentes de suspeitas de vieses e opacidade. - Assimetria de poder informacional com grandes fornecedores de tecnologia
Escritórios, sobretudo de pequeno e médio porte, tendem a simplesmente aderir a ferramentas prontas, sem poder de barganha para negociar cláusulas de responsabilidade, exclusão de dados de treinamento ou direitos de auditoria — ampliando a necessidade de políticas internas de avaliação de fornecedores e contratos de tecnologia.
Nesse cenário, não implementar Governança de IA significa operar sob risco jurídico, ético, reputacional e competitivo.
Assegurar que a supervisão humana seja real e qualificada: a revisão não pode ser ato mecânico, mas exercício de juízo crítico profissional
4. Benefícios estratégicos da Governança de IA em escritórios de advocacia
A implementação de Governança de IA não é apenas uma obrigação defensiva; ela produz ganhos estratégicos: (i) Mitigação de riscos éticos, disciplinares e regulatórios; (ii) Aumento da confiança de clientes; (iii) Melhor qualidade técnica; (iv) Vantagem competitiva sustentável; (v) Preparação para futuros marcos legais de IA.
Conclusão
A confluência entre a Recomendação n. 001/2024 do CFOAB, a Resolução n. 615/2025 do CNJ e os principais documentos internacionais de referência em IA (OCDE, ISO/IEC 42001, NIS2, ICO, IAPP, entre outros) sinaliza de forma inequívoca que a advocacia entrou na era da Governança de Inteligência Artificial.
Mais do que uma escolha tecnológica, o uso de IA em escritórios de advocacia se tornou uma questão de deontologia profissional, responsabilidade civil, proteção de dados, segurança da informação e estratégia institucional. Escritórios que insistirem em adotar IA de forma improvisada, sem políticas claras, sem inventário de sistemas, sem avaliação de risco e sem supervisão humana estruturada, caminham na contramão do que recomendam a OAB, o CNJ e a comunidade internacional.
Por outro lado, a advocacia que assumir a governança de IA como oportunidade poderá reconfigurar sua própria prática profissional, combinando eficiência e inovação com compromisso robusto com direitos fundamentais, sigilo profissional e confiança social. A implementação de programas formais de Governança de IA, inspirados em normas como a ISO/IEC 42001, princípios da OCDE e guias de autoridades como o ICO, deixa de ser mera boa prática para se tornar condição concreta para o uso ético, robusto e confiável de IA nos escritórios de advocacia.



