É natal: a menina segura um recém-nascido

É natal: a menina segura um recém-nascido

adolescente segurando criança

Nos estertores do ano de 2025, que finda com uma multiplicidade gritante de notícias sobre violência, em especial com motivação de gênero e em desfavor de crianças e adolescentes, houve na mídia divulgação dos dados do Censo de IBGE do ano de 2022, contabilizado o número de nada menos do que 34 mil crianças e adolescentes, de 10 a 14 anos, vivendo em união conjugal no Brasil; cada oito entre dez crianças eram meninas, sem formalização da maior proporção de uniões. Estimou-se, ainda, que 77% da população nesse contexto era feminina1.

Sob a ótica do Direito, o artigo 213, parágrafo primeiro do Código Penal estabelece tratar-se do crime de estupro o constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à mantença de conjunção carnal ou prática ou permissão de prática consigo de outro ato libidinoso, quando a vítima for menor de 18 anos ou maior de 14 anos.

Nesse passo, a relação sexual consentida de pessoa maior de 14 anos tecnicamente não configura estupro se ausente constrangimento para tanto, mediante violência ou grave ameaça. Nem por isso há consentimento legal para contração de matrimônio (artigo 1520 do CC, alterado pela Lei 13.811/19, que veda o casamento do menor de 16 anos). No que tange à união estável, inexiste dispositivo no Código Civil referente à capacidade para constituição de união estável, com entendimento doutrinário e jurisprudencial de natureza robusta no sentido de que devem ser observados, por analogia, os mesmos critérios presentes para o casamento2, ressalvados posicionamentos diversos.

Destaca-se, a propósito da admissibilidade de união estável de menor de 16 anos, o REsp 2182369/MG, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma do STJ, julgado em 07/10/2025.

No aludido aresto, deliberou-se pela possibilidade de existência de união estável de menor de 16 anos, de modo excepcional, diante da incidência de norma protetiva. Na hipótese aventada, a companheira de pessoa falecida estava postulando indenização pelo seguro obrigatório DPVAT em decorrência de acidente fatal que atingiu o companheiro. A argumentação foi no sentido de que o artigo 1520 do Código Civil, ao vedar o casamento do menor de 16 anos, tem matriz protetiva, com finalidade de evitar o casamento infantil, assegurando a proteção da criança e do adolescente, combatendo a violência de gênero, evitando que especialmente meninas abandonem os estudos para assumir, precocemente, responsabilidades familiares, salientando-se a diversidade entre casamento e união estável.  Outrossim, a negativa da união estável, ato-fático jurídico, implicaria em óbice para que incapazes usufruam de direitos previdenciários, sucessórios e indenizatórios, em descompasso com o ECA e Constituição Federal. Refutou-se a incidência de vedação do artigo 1520 do CC à união estável, de modo automático.

Mais além, o artigo 217-A do diploma penal preconiza o delito de estupro de vulnerável, consistente na conjunção carnal ou prática de diverso ato libidinoso com menor de 14 anos.

A Súmula 593 do STJ dispõe que o crime de estupro de vulnerável se configura com qualquer ato sexual com menor de 14 anos, com irrelevância do consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou eventual namoro com o agente, operante presunção de vulnerabilidade absoluta da criança ou adolescente para consentir livremente.

Logo, é possível que, em regra, consideremos a vedação do artigo 1520 do CC para o casamento do menor de 16 anos, inaplicável instantaneamente à união estável, que comporta flexibilização mediante a análise casuística e desde que presentes os requisitos do artigo 1723 do CC, lembrando-se que, pela lógica evolutiva da estatística revelada pelo Censo de 2022, as uniões entre menores e pessoas capazes se consumam de maneira considerável em nosso país.

Quanto ao estupro de vulnerável, de modo diverso do acórdão da 3ª T do STJ de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi supracitado, há posicionamentos jurisprudenciais que consideram a necessidade de análise do caso concreto com viabilidade de flexibilização da vulnerabilidade, consoante as circunstâncias específicas.

O panorama legislativo incidente deve ser explanado justamente pelo contexto fático em que nos encontramos em termos nacionais: percepção de evolução no quadro de violência de gênero e do vulto das denominadas uniões infantis, entre maiores de 18 anos e menores de idade.

Ademais, quando cogitamos em prática de políticas públicas para prevenção de violência de gênero, não podemos nos apartar da premissa maior que são as cargas educacional e cultural percebidas por meninos e meninas em nossa sociedade, desde tenra idade.

Com efeito, as diferenças de poder nas interrelações de pessoas de gêneros opostos se mostram nos primórdios da infância, com outorga de deveres e regalias de modo não equilibrado e igualitário entre os indivíduos.

Nesse quadro, culturalmente é apreendido o informe de que corpos jovens femininos são mais úteis e sexualmente desejáveis, ao ponto de se naturalizar a união infantil, prática essa agravada em várias regiões do país por dificuldades econômicas, leia-se, miséria, analfabetismo e aceitação, ainda que por inércia, do comportamento.

Crianças que deveriam ser protegidas e estimuladas positivamente por seus guardiães, comumente pais, não raras vezes são negociadas com terceiros (trocas de favores, etc), sob a promessa de que serão alimentadas e “cuidadas”.

O trágico resultado desse hábito pernicioso e criminoso, efetivamente, revela-se nas funestas estatísticas de que, mesmo em 2022, já revelavam 77% dos incapazes (do gênero feminino) em uniões infantis. Troca-se, então, a infância, o brinquedo, o cuidado e o aprendizado por vida sexual adulta- para quem muitas vezes não tem seu organismo maduro e apto a essa atividade- nascimento de filhos, afazeres domésticos e não raras vezes, violência doméstica.  A submissão, a desvalorização dessas crianças enquanto seres humanos, extirpando-se quaisquer potenciais evolutivos em termos de conhecimento, educação e profissionalização, criam terreno fértil para que a violência doméstica e familiar se instaure, inclusive sob a triste e covarde faceta do feminicídio.

Recentemente, a polícia civil do Amazonas prendeu em flagrante um homem de 33 anos por estupro de vulnerável contra uma menina de 11 anos em Manacapuru, a 68 km de Manaus. Tal pessoa coabitava maritalmente com a autorização paterna, preso o genitor por omissão. Houve denúncia ao Conselho Tutelar e ambos, agressor e pai, foram presos em flagrante. O primeiro mudava constantemente para que a população não notasse o relacionamento criminoso3.

A pedofilia não pode ser normalizada sob as vestes de supostas diferenças culturais ou tradições locais.

Nesse passo, mostram-se absolutamente pertinentes as colocações da Ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 2182369/MG: o crime de estupro de vulnerável deve ser enfocado sob a ótica da Súmula 593 do STJ, incidindo, portanto, presunção de vulnerabilidade absoluta do incapaz.

Por mais meninas brasileiras sorrindo ao ganharem bonecas no Natal.

 Referências

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1. www1.folha.uol.com.br, novembro de 2025, Santos, Natália, Menon, Isabella, acessado em 21/12/2025;

2. Tartuce, Flávio, “A Lei n. 13.811/19 e a união estável do menor de 16 anos”, IBDFAM, Belo Horizonte, 2019, pg 3, www.scholar.google.com, acessado em 21/12/2025;

3. https://sbtnews.sbt.com, acessado em 21/12/2025;

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