Afinal, o que faz uma Ética Antirracista?

Afinal, o que faz uma Ética Antirracista?

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Com frequência somos iniciados/as em processos discursivos, epistêmicos e científicos que não demarcam a sua vinculação com os processos políticos e sociais, isto é, reverberam práticas, valores e sentidos que, ao remontar às máximas modernas, retroalimentam uma suposta neutralidade, universalidade e não localização.

Assim, compreendemos que a suposta neutralidade dos saberes serve, na verdade, à perpetuação de parâmetros coloniais de mundo que, de modo expressivo, não preveem a localização dos sujeitos, bem como dos saberes e, mais, não se comprometem ou se engajam na transformação real dos sistemas de dominação, inclusive dos que perpassam pela manutenção de descrições que radicalizam a distância entre os que se anunciam como sujeitos de conhecimento e “os outros”. A modernidade, como complexo político e epistêmico alicerçado nas investidas coloniais, permitiu que os modelos de racionalidade e de subjetividade informados pela eurocentralidade construíssem uma oposição radical entre “saber e mito”, “vida e morte”, “saber e ignorância”, “autoridade epistêmica e vozes que deveriam permanecer silenciadas”, “entre o corpo valorizado e o outro, informado como alvo”.

Desse ponto de vista, as relações intersubjetivas culturais entre a Europa, ou, melhor dizendo, a Europa Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa. Mesmo assim, a única categoria com a devida honra de ser reconhecida como o Outro da Europa ou “Ocidente”, foi o “Oriente”. Não os índios da América tampouco negros da África. Estes eram simplesmente primitivos […] não seria possível explicar de outro modo, satisfatoriamente em todo caso, a elaboração do eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento, da versão eurocêntrica da modernidade e seus principais mitos fundacionais: um, a ideia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza que culmina na Europa. E dois, outorgar sentido às diferenças entre Europa e não-Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história de poder. 1

Nesse sentido, percebemos que a produção de valor na modernidade e na contemporaneidade é marcada pelo registro colonial, isto é, pela relação política e social que outorga a diminuição dos sujeitos marcados como os outros. O racismo opera — enquanto ideologia de poder, como técnica política e maquinário de princípios de execução — como parâmetro de subordinação de sujeitos. Assim, na contemporaneidade, observamos, de forma ostensiva, a perpetuação de um imaginário social que fetichiza a destruição de sujeitos negros e demais corpos que são apresentados à distância da norma branca, masculina, ciseterossexual, sem deficiência e privilegiada econômica e territorialmente.

O racismo impede que sejamos capazes de uma vivência ética, pois recusa a liberdade e a alteridade. Assim, a impossibilidade ética de uma sociedade racista ocorre à medida que as superioridades e a hegemonia são forjadas como princípios morais inquebráveis. Aliás, a memória colonial que estrutura as nossas experiências faz com que a violação, fruto de uma administração política, seja convertida numa hierarquia apresentada como um destino, isto é, a brutalidade colonial assume “novos contornos, mais sofisticados; chegando, às vezes a não parecer violência, mas verdadeira ‘superioridade’.” 2

O racismo enquanto administração da marca, do estigma e do estereótipo faz com que sujeitos sejam desumanizados e privados da possibilidade. Assim, a violência, produto fundamental do racismo, faz com que sujeitos racializados sejam constantemente vilipendiados. Ao mesmo tempo, observamos a fratura da liberdade e da alteridade, no instante que os valores sociais são administrados para impedir outras relações, isto é, relacionalidades que constroem uma reciprocidade real, encontros que abandonam, de fato, o interesse torpe pela hierarquização dos sujeitos. Nesse mesmo sentido, pensar a violência direcionada aos sujeitos negros como um destino, como um valor moral inquestionável quebra o reconhecimento e, ao mesmo tempo, nos lança às zonas de perigo e de impossibilidade ética.

Assim, uma ética antirracista importa, à medida que nos provoca, nos faz pensar e agir rumo à construção de um novo pacto civilizatório. Pacto este comprometido verdadeiramente com a destruição do lastro colonial que nos ensina, dia após dia, que as diferenças devem ser neutralizadas e radicalmente destruídas. Uma ética antirracista se compromete com a alteração dos processos pedagógicos e valorativos que restringem a nossa percepção, vinculando humanidade à brancura, à masculinidade, à ciseteronorma e aos demais sistemas de manutenção de privilégios políticos. Assim, a ética antirracista corrói valores e normas que visam cristalizar a barbárie.

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Thiago Teixeira

 

Referências

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1 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, set. 2005. p. 122.

2. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92-93, jan./jun. 1988, p. 71.

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