A colonialidade, como reativação de valores, normas e ideologias modernas operacionalizadas, sobretudo pela hierarquização entre os sujeitos, desliza na contemporaneidade quando nos deparamos com a banalização da vida de sujeitos negros torturados em praça pública, com a manutenção de sistemas recreativos destinados a naturalizar discursos que rebaixam a humanidade de sujeitos negros. A supressão de direitos fundamentais como a liberdade de crença religiosa, em nome da perpetuação de sistemas taxonômicos define o que pode e o que não pode ser legitimado a partir das premissas normativas da brancura, da ciseteronorma e dos privilégios simbólicos e materiais, inclusive no que diz respeito à liberdade de culto.
O racismo, como tecnologia de controle e submissão, contribui para a perpetuação de uma falsa simetria política, por fazer com que os sujeitos, sobretudo os que se beneficiam dos privilégios correspondentes aos pactos da branquitude, assumam narrativas que se esquivam de enfrentar, com consciência e responsabilidade ética, os impactos destrutivos da memória colonial.
Assim, ao dizer “não vejo cor, pois somos todos humanos”, justifica-se a manutenção de valores e práticas modernas que criam um ideal de humanidade alicerçado no subjugamento dos que não são reconhecidos como vidas e, ao mesmo tempo, retroalimentam uma percepção descompromissada com as questões políticas, uma vez que, se não há o problema, também não é preciso que nos movamos para transformar a nossa realidade. Ocorre que, no que diz respeito ao racismo como um fenômeno político, histórico e institucional, nós sabemos que há o problema e, ao mesmo tempo, compreendemos que a atualização desse problema gera lucro, intensifica assimetria nas narrativas, silenciamentos que mantêm legítimas epistemologias brancas e norte-globais, bem como a perseguição explícita contra sujeitos negros, contra a sua cultura, a sua ancestralidade e o valor civilizatório imbricado à cosmologia aquilombada das Comunidades Tradicionais de Terreiro — CTTro (NOGUEIRA, 2020, p. 55).
A perseguição religiosa contra territórios de cultos ancestrais, de Candomblé e de Umbanda, revela não só uma indisponibilidade para a diversidade religiosa, mas a intencionalidade colonial que deseja rebaixar a origem negra que dá identidade, cosmologia e potência contra-hegemônica às CCTro. O rompimento com as bases normativas e subordinadoras é traço fundamental das resistências negras histórica e politicamente. Sendo assim, a preservação da ancestralidade que se alicerça no diálogo, na valorização do trabalho e do indivíduo inserido na comunidade ameaça as bases (in)civilizadas que, da modernidade até aqui, nos formaram no individualismo, na exploração do trabalho e na banalização do outro, que pode ser descartado quando não for mais útil.
O racismo religioso opera como uma engrenagem nessa política de extermínio que objetiva arruinar a intelectualidade, a cultura, os modos de vida e as espiritualidades que desestabilizam a norma, isto é, que denunciam a produção restritiva e violenta dos sistemas hegemônicos que precisam destruir para manter seus estatutos de legitimidade. O recente caso da mãe que perdeu a guarda da filha de 14 anos, em Ribeirão das Neves-MG, por ter levado a adolescente em rituais de Umbanda, a destruição de uma Casa de Candomblé em Esmeraldas, em maio deste ano e o crescimento vertiginoso de ataques às Comunidades tradicionais de terreiro, no Brasil, em geral, e em Minas Gerais, em específico, revelam que lidamos com um estado de exceção, isto é, com a suspensão de direitos — mesmo que esses mesmos direitos estejam assegurados na letra da lei — que se materializa na violação, inclusive institucional, de presenças políticas designadas longe da norma. É preciso que sejamos honestos/as ao identificar as bases perversas que se escondem na falsa simetria que o racismo cria, justamente para beneficiar corpos e grupos sociais que se logram das oposições radicais. Sendo assim, precisamos analisar o racismo religioso como um fenômeno decorrente dos interesses coloniais que ainda deslizam, de forma expressivamente violenta, pelas nossas experiências.
____________________
Referências
________________________________________
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.