Saúde mental, liame com questões de gênero e prática de atos ilícitos

Saúde mental, liame com questões de gênero e prática de atos ilícitos

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Platão no diálogo Timeu por intermédio deste, o narrador, elucida como os deuses criaram o universo e o ser humano. As cabeças revestiriam as almas na forma perfeita da esfera e para ampará-las, criaram corpos que as sustentassem, animados tais corpos de uma segunda alma, demasiadamente inferior, irracional, mortal, a qual continha as paixões – prazer, dores, medo, ousadia, raiva, expectativa, senso de percepção irracional e luxúria. Timeu acrescenta que um homem que domina suas emoções desfrutará de uma vida de razão e justiça e renascerá em um paraíso celestial de felicidade eterna. Entretanto, um homem dominado por suas paixões reencarnará como mulher.1

Temos pois um grande filósofo grego, o principal discípulo de Sócrates, que exerceu influência sobre diversos pensadores tais como Aristóteles, Descartes, Immanuel Kant, reportando-se à mulher no diálogo Timeu como ser dissociado do uso do intelecto, assomado pelas paixões, vinculado aos sentidos e não ao mundo das idéias, ao racionalismo. Ainda que assim se dê no texto em questão, no diálogo A República Platão defende que homens e mulheres são iguais por natureza,2 com a ressalva da restrição conceitual no cenário helênico que limitava as mulheres à transmissão da cidadania aos filhos e não ao efetivo exercício de direitos políticos.

Portanto a concepção de que as mulheres se restringem à irracionalidade, ao domínio das emoções e impulsos, está incorporada culturalmente nos agrupamentos sociais há séculos. Como consignamos quanto ao pensamento de Nísia Floresta, em artigo precedente, externado no livro “Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”, nos idos de 1832, enfatizou a autora a racionalidade das mulheres, em grau paritário com os homens.

Temos, por conseguinte, o amálgama resultante de cultura e especificidades do gênero feminino de modo a concorrer fortemente para o comprometimento da saúde da mulher, quer sob aspectos psíquicos, quer emocionais ou ainda, orgânicos.

Vivemos em um país onde também a saúde mental é negligenciada, outro fruto cultural. Os serviços públicos são escassos no oferecimento de sessões psicoterapêuticas a serem ministradas por profissionais habilitados, o que inegavelmente concorre para o agravamento do estado psíquico e emocional das mulheres, juntamente com tabus a respeito da vinculação entre submissão à terapia ao total desequilíbrio , loucura ou ainda demérito do paciente.

Os índices de tentativas de suicídio são maiores entre mulheres. Conforme explanam Felipe de Baére e Valeska Zanello no artigo3 “O comportamento suicida em mulheres de distintas sexualidades: violências silenciadas, O comportamento suicida em mulheres”, em pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde em 2014 envolvendo172 nações foi declinado maior número de tentativas de autoextermínio entre mulheres na proporção majoritária dos países averiguados. Em território nacional, o último levantamento sobre o tema divulgado pelo Ministério da Saúde (2017) acusou que as tentativas de suicídio alusivas a mulheres corresponderam a 69% dos registros entre 2011 e 2016. Acrescentaram os autores que, consoante Jaworski (2010), como o número de óbitos é maior entre os homens em decorrência da opção por métodos de maior letalidade nas tentativas, criou-se a falsa concepção que as investidas deles são mais sérias. Trata-se de perspectiva que, somada à desqualificação do sofrimento feminino, sob a ótica de que as mulheres são mais emocionais, finda por desprezar o fato de que as tentativas de suicídio são em número mais elevado em relação àquelas. O trabalho concretizado pelos pesquisadores computou informações apresentadas por grupo de nove entrevistadas, de idades, formações educacionais, profissionais e ainda, orientações sexuais diversas. Em suas conclusões, os referidos autores obtemperaram que:

“Através das categorias apresentadas, foi possível evidenciar o impacto das violências de gênero na saúde mental das mulheres. Desde cedo, os signos de feminilidade, que as impulsionam para destinos de subserviências e renúncias, impactam a constituição psíquica das mulheres, principalmente em sociedades estruturadas pelo machismo. Logo, aquelas que não se adequam aos ditames do patriarcado tendem a lidar com todos os mecanismos sociais de reparação dos comportamentos tidos como desviantes. Ademais é possível observar, a partir da experiência das nove participantes, a necessidade de aumentar a frequência dos debates sobre sofrimento psíquico decorrente de masculinidades adoecedoras. Se a representação do homem é marcada pela violência e subjugação de suas parceiras, familiares e conhecidas, é preciso que eles encontrem outras vias de reafirmação identitária que não estejam fundamentadas na misoginia e na exploração das mulheres”.

Então temos dados concretos sobre o comprometimento da saúde psíquica e emocional das mulheres fortemente derivando de diferenças de poder nas relações entre gêneros, peculiares à cultura patriarcal, fator de suma relevância que não pode em absoluto ser olvidado na aplicação de dispositivos normativos e que, inclusive, embasou a edição do Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero 2021 pelo CNJ.4

Não é demasiado lançar que não existe um padrão comportamental ou moral (sob o ponto de vista ético) humano. Cada ser compõe sua individualidade sob características próprias, subjetividade intrínseca, capacidade cognitiva e deliberação de vontade oscilantes. Ao par da inegável influência da cultura patriarcal e as resultantes discrepâncias de relações de poder entre gêneros na saúde psíquica e emocional das mulheres, temos ainda as conformações exclusivas. Estereótipos de que homens são racionais e mulheres emocionais dentro de um contexto puramente empírico não se sustentam, por via de consequência. Cada pessoa é singular e a coexistência de ambas as facetas , racional e emocional, produz indivíduos com maior completude.

Não obstante, justamente pela ausência de educação e de conscientização sobre a relevância do tratamento da saúde psíquica, além de falhas estruturais na disponibilização de serviços à população em geral, incidem na perpetração de delitos por mulheres também aspectos de ordem estrutural e orgânica. Tem-se que os atos extremos de tentativas de suicídio na dimensão relatada pelos pesquisadores supra citados, que escancaram publicamente o sofrimento das mulheres na pós-modernidade, além de diversos atos ilícitos cometidos por elas, poderiam convictamente ser evitados mediante o não menosprezo do sofrimento feminino, a disponibilização de educação e atendimento adequado à restauração da saúde psíquica, sem contornos de demérito, com tratamentos medicamentosos ajustados aos quadros clínicos, se necessário, para superação de conjunturas atrozes advindas de perdas emocionais. Sim, o sofrimento adoece e não podemos ignorar esse fato, menos ainda imputar às mulheres a crônica e inabalável condição de pessoas em eterno desequilíbrio por serem consideradas como “emocionais” demais, atitude típica do mais claro e injustificável, como de resto sempre é, preconceito.

Na esfera jurídica podemos mencionar um ilícito civil e um crime tipificado no Código Penal como usualmente atrelados à imputação de prática por mulheres.

Embora inexistam pesquisas atualizadas acerca da identidade de gênero dos autores de alienação parental (sob quais proporções, mães, pais, etc),  enfatizando o Ministério Público do Paraná em 20215 que o último Censo do IBGE revelou que no Brasil existiam cerca de 45 milhões de crianças e adolescentes, sendo 39 milhões de crianças (de zero a doze anos), cuja maioria vivia em famílias compostas por ambos os genitores, albergando as estatísticas de filhos de pais separados o período de 2003 a 2010, com cerca de 618.363 crianças e adolescentes cujos pais assim se configuraram. De ver-se que o aludido levantamento encontra-se defasado frente à realidade social, inclusive em fase pós pandêmica já que nos anos em que a covid 19 incidiu fortemente verificou-se a eclosão de inúmeros divórcios e rupturas de uniões estáveis. Ainda que assim seja, é perceptível a grande dimensão de crianças e adolescentes que, pela dinâmica familiar, estão mais sujeitos a sofrerem alienação parental.  Forçoso observar que quem labuta na seara do Direito de Família se depara com patamar mais expressivo quantitativamente de prática concreta de atos de alienação parental pela genitora, comumente a guardiã do filho menor, o que por evidência não dispensa a análise dos pontos atrelados a saúde mental, gênero, hipóteses de violência doméstica, etc. Muito já se discutiu acerca da temática ao ponto de se desqualificar a Lei de Alienação Parental, inquinando-a de conteúdo deletério e deliberadamente parcial em detrimento dos direitos das mulheres, inclusive, com projetos legislativos para expurga-la, sem todavia qualquer êxito (a Lei 14.340/22 apenas realizou algumas alterações na Lei 12.138/10, eliminando a suspensão da autoridade parental da lista de medidas possíveis de serem aplicadas em caso de alienação parental, sem excluir a aplicabilidade do Código Civil, assegurando convivência da criança ou adolescente com o genitor de modo assistido no fórum em que tramita ação ou em entidades conveniadas, salvo iminente risco de prejuízo à integridade física ou psicológica dos filhos;  recomendou deliberação sobre liminar de modo preferencial sob o pressuposto de  entrevista do incapaz por equipe multidisciplinar; apregoou a nomeação de perito judicialmente, devidamente habilitado ao labor, na hipótese de ausência ou insuficiência de profissionais responsáveis pela elaboração do estudo psicológico, biopsicossocial ou de qualquer outra espécie de avaliação técnica, dentre outras deliberações). A alienação parental é ato ilícito que se verifica com frequência e nocividade estarrecedoras em situações de ruptura de convívio familiar entre os titulares do poder familiar ou inexistência, até, do mesmo (caso de genitores que pouco se relacionaram ou coabitaram, por hipótese). E lamentavelmente algumas mulheres em sofrimento psíquico e emocional, desprovidas da imprescindível clareza sobre seus respectivos estados e não recebendo a assistência profissional a que fariam jus para restauração de saúde psíquica e emocional, muitas vezes sem voluntariedade diante da cabal inexistência de recursos financeiros, como é corriqueiro, findam por afastar intencionalmente o cotitular do poder parental executando verdadeira campanha para negativar todo e qualquer comportamento do diverso genitor à luz dos olhos do filho comum, minando o afeto e sentimento de confiança do incapaz de forma direcionada ao alienado. Lamentavelmente as maiores vítimas da dinâmica são os filhos os quais experimentam, por vezes irremediavelmente, danos emocionais incomensuráveis.

Interessante questão se mostra em relação ao infanticídio, previsto no Código Penal no artigo 123 (“matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”), o qual é considerado homicídio privilegiado, que admite o concurso de pessoas, delito cuja competência para julgamento pertence ao Tribunal do Júri.  No que se refere à expressão “logo após o parto”, a doutrina se inclina pela consideração da vigência do estado puerperal, sem conotação instantânea, conforme a casuística. No crime de infanticídio, além da presença de elementos de natureza orgânica alusivos à mulher que perpetra o delito – ou seja, estado puerperal – as circunstâncias concernentes ao cometimento delitivo muitas vezes se reportam a questões de gênero com intensidade. A propósito, confira-se a seguinte ementa:

APELACAO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A HOMICÍDIO QUALIFICADO PELA ASFIXIA. PROVA QUE EVIDENCIA A PRÁTICA DE DELITO EM CIRCUNSTÂNCIA ESPECIAL, QUAL SEJA, EM ESTADO PUERPERAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA INFANTICÍDIO. APLICAÇÃO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE LIBERDADE ASSISTIDA, PELO PRAZO MÍNIMO DE SEIS MESES. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. ( Apelação Cível Nº 70069302214, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol, Julgado em 29/06/2016).

(TJ-RS – AC: 70069302214 RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol, Data de Julgamento: 29/06/2016, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 06/07/2016)

No aludido julgado, o digno Relator considerou a idade da autora do ato infracional, a circunstância da adolescente ocultar a gravidez indesejada, o fato de haver dado à luz em um vaso sanitário sem assistência e sozinha, omitindo até mesmo em nosocômio o parto e o advento da criança de modo não harmônico com o que poderia ser considerado estado de normalidade, presente, pois, o estado puerperal. Se invertêssemos os papéis e abstraíssemos o tipo penal dificilmente um adolescente do gênero masculino ostentaria reações similares para ocultar sua paternidade. Logo, saúde mental das mulheres apresenta liame com questões de gênero e deflui inclusive na eclosão de ilícitos em detrimento, não raras vezes, das mesmas mulheres o que deve ser equacionado, frente à hipótese concreta, com ajuste pelo Poder Judiciário.

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Luciana Simon de Paula Leite

 

Referências

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1. Haidt Jonathan, A Mente Moralista, Rio de Janeiro, Alta Cult Editora, 2020, pg 30;

2. Araújo, Handerson Reinaldo,  Artigo : Platão atribui às mulheres a condição de sujeitos morais? Uma análise a partir do livro V do diálogo A República, Instauratio Magna, Revista do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal do ABC, aprovado em 05 de abril de 2021, acessado em 24 de outubro de 2022 periodicos.ufabc.edu.br;

3. Publicado em inglês na Revista de Psicologia Clínica da PUC/RJ, versão impressa ISSN 0103-5665, versão on line- ISSN 1980-5438;

4. https://www.cnj.jus.br- protocolo 18-10-2021, acessado em 25 de outubro de 2022;

5. www2.mppa.mp.br, “Criança e Adolescente”, acesso em 25/10/2022;

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