Na obra clássica “A cidade Antiga” de Fustel de Coulanges, em francês “La Cité Antique”, o autor afirma que a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi o casamento. Todavia, não havia comunicação de uma família com outra, ou os rituais das duas famílias, porque o direito de realizar os ritos era transmitido de varão para varão, isto é, era um direito masculino. A mulher, ao se casar, passava a adorar os antepassados do esposo. A cerimônia de casamento a impedia de adorar os deuses de seu pai e ao mesmo tempo impunha os de outra linhagem masculina. Duas famílias vivendo perto uma da outra, têm deuses diferentes.
O casamento desligou-a por completo da família do pai e quebrou todas as ligações religiosas. O casamento deu-lhe um segundo nascimento. À partir de agora ela será filha do seu marido, filiae loco. A mulher passa a pertencer completamente à família e à religião do marido. 1
Essa situação se perpetuou até a década de sessenta. A obrigatoriedade de a mulher adotar o sobrenome do marido no Brasil foi estabelecida pelo Código Civil de 1916. Em 1962, foi promulgada a lei nº 4.121, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, que tornou facultativo o acréscimo, mas as mulheres continuaram adotando o sobrenome do marido até o advento da lei do divórcio de 1977.
O sobrenome também é conhecido como nome de família ou patronímico. É aquele que determina a origem ou a procedência familiar de uma pessoa.2
Diante dessa breve apresentação e dos dias atuais, pergunta-se: A esposa ainda deve adotar o sobrenome do marido ao casar-se?
Atualmente, a alteração do sobrenome é permitida pelo casamento onde qualquer dos cônjuges pode acrescer o sobrenome do outro (art. 1.565, § 5º do Código Civil), Tal hipótese também se estende à união estável e uniões homoafetivas.
Neste ponto, Daniel Carnacchioni afirma que somente é possível o acréscimo do sobrenome do cônjuge ou companheiro e nunca a supressão de um sobrenome de família.3 Todavia, a jurisprudência, acertadamente tem entendido de forma contrária, permitindo além o acréscimo, a supressão de um ou de alguns dos sobrenomes do cônjuge para a inclusão do sobrenome do outro, desse modo evitando-se nomes muito extensos como era como no período do Brasil Imperial. 4
Dados recentes da Arpen-Brasil (Associação de Registradores de Pessoas Naturuais) apontam uma queda de 24% no total de pessoas casadas que adotam o sobrenome do cônjuge nos últimos 20 anos. Em 2002, época em que o atual Código Civil foi publicado, o percentual de mulheres que adotavam o sobrenome do marido no casamento representava 59,2% dos matrimônios. Hoje, em menos da metade dos casamentos a mulher adota o sobrenome do marido e essa tendência está aumentando a cada ano que se passa, ou seja, cada vez mais os casais tem mantido o nome de solteiro ao se casarem.
No Distrito Federal, menos da metade das mulheres adotam o sobrenome do marido (43,9%), e 0,7% dos homens adotam o sobrenome da esposa. Já a mudança dos sobrenomes por ambos os cônjuges foi a escolha de 8,3% dos noivos em 2021. A maioria dos casais, no entanto, têm preferido manter os sobrenomes da própria família. 5
Isso se deve a vários fatores. Primeiro, a igualdade entre os cônjuges consagrada na constituição e no Código Civil que até então não existia. Segundo, a burocracia e custos para a alteração de sobrenome, haja vista que o cônjuge que adota o sobrenome do outro precisa alterar todos os documentos. Outro ponto importante é a independência profissional e financeira que muitas mulheres têm conquistados nos últimos anos. Nesse caso, como ela passa a ser conhecida profissionalmente com um sobrenome de solteira, dificilmente adotará o sobrenome do marido que poderá lhe trazer prejuízos profissionais. Também há que se ressaltar que os casamentos eram indissolúveis até 1977, hoje não mais, e muitos não querem mais “carregar” o sobrenome daquela pessoa que viveram depois de um divórcio. Nem o cônjuge que usa o sobrenome do outro, nem aquele que cede.
E, por fim, não menos importante, é a superação desse aspecto patriarcal e machista que foi inserido na sociedade por costumes que já não se justificam em um ambiente de igualdade de gêneros.
Como apontamos no início desse texto, a mulher passava a pertencer à família do marido, e nada mais comum do que adotar o seu sobrenome. Atualmente, tal situação não acontece mais, portanto não se justifica mais esse costume a não ser que seja de livre interesse dos cônjuges.
Esses são sinais de novos tempos, de uma nova família fundada exclusivamente no afeto sem a necessidade de regras e rituais que refletem uma sociedade patriarcal e machista.
Referências
____________________
1. COULANGES, Fustel. A Cidade antiga. Texto integral. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret. 2001, p. 46-52.
2. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Pontos controversos acerca do nome civil. In REVISTA NACIONAL DE DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES. V.22, ano IV. Porto Alegre. Magister. jan-fev 2018.p. 113.
3. CARNACCHIONI, Daniel.Curso de Direito Civil. Parte Geral. 3 ed. Salvador: Juspdivm, 2012.p. 292.
4. Segundo Museu Imperial de Petrópolis, o nome de D. Pedro II seria: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon. Museu Imperial de Petrópolis. Disponível em: https://bit.ly/3X7VJLk . acesso em 06.02.2017.
5. Menos da metade das mulheres adotam o sobrenome do marido no DF . Disponível em: http://glo.bo/3leldtd. acesso em 03.02.2023.