O que pode ser reconhecido como uma vida? Quais são as possibilidades de uma presença preanunciada como descartável? O que pode um corpo brutalizado pelas formulações políticas de marcação e de exclusão? Essas questões revelam que a nossa compreensão sobre uma vida, ou melhor, sobre o que é uma vida legítima, está diretamente ligada às condições normativas que permitem (ou não) o reconhecimento. Assim, é possível observar uma relação direta entre a inteligibilidade e a norma, uma vez que a legitimidade de uma vida é conferida nos limites formulados pelos dispositivos de poder e de validação como a raça, o gênero, a sexualidade, a classe e demais sistemas políticos de hierarquia, organização e exclusão social.
As dinâmicas discriminatórias regulam as presenças por meio da norma. A norma é constituída pelo interesse de controle, neutralização e subjugamento de corpos preanunciados como dissidentes. É possível notar, nesse prisma, que a norma gera uma fronteira política, à medida que exclui, mas, ao mesmo tempo, exige a presença do corpo subjugado a fim de que se instaure um sistema radical de comparação e de violência. Os exercícios de poder que fabricam e gerenciam essa fronteira político-social se alicerçam na manipulação do corpo público. Assim, é possível inferir que “a produção dos corpos-públicos dá ao sujeito norma e ao seu fetiche de poder uma sensação de controle e de vigilância permanente […] o corpo público, a partir das práticas de controle e de subordinação, é desautorizado.” (TEIXEIRA, 2019, p. 57).
Trata-se de uma manipulação política das identidades alinhavada pela violência como uma etiqueta. Nesse contexto, a diferença é articulada e transformada — em nome das bases políticas modernas e contemporâneas, numa dinâmica que ventila um ethos colonial — em subordinação. Como nos ensina Audre Lorde (2020), a diferença, quando não reconhecida nos limites da humanidade, é usada contra os sujeitos transformados em presenças inóspitas, perigosas e, portanto, submetidas à força da violência.
Quando observamos a brutalidade de um homem branco direcionada ao corpo de Nilton Ramon — jovem negro e entregador de aplicativo no Rio de Janeiro — por ele se recusar a subir no prédio para realizar uma entrega, compreendemos como a raça e a classe são acionadas, inclusive dentro da própria realidade do gênero, transmutando os corpos que escapam às normas políticas que designam humanidade. Observamos ainda que Nilton, diante daquele sujeito que enuncia a si mesmo como autoridade política e determinação soberana de humanidade, se torna um corpo diluído na desumanidade e, por isso, pode ser humilhado e alvejado sem que isso cause qualquer constrangimento. Trata-se de uma operação política que impede o reconhecimento, uma vez que essa disposição ética pressupõe a legitimidade, dignidade e validade da vida de outros sujeitos. Esse caso demonstra que as políticas discriminatórias não só impedem o reconhecimento, pois preanunciam determinadas vidas como descartáveis, como também justificam a violação como um modelo de relação, como valor que, de forma sistêmica, desintegra a humanidade dos corpos anunciados como públicos.
Referências
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LORDE, Audre. Sou sua irmã. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Editora Devires, 2019.