A branquitude e a farsa: os benefícios destrutivos da não localização

A branquitude e a farsa: os benefícios destrutivos da não localização

black-lives-matter-concept-with-people-faces

As perspectivas antirracistas descortinam uma categoria política que, embora seja profundamente eficaz nas articulações sociais, não poupa esforços para dissimular a sua presença: a branquitude.  Compreendemos a branquitude como um sistema político que: confere humanidade e, ao mesmo tempo, desumanidade; perpetua a lógica de privilégios, simbólicos e materiais, impedindo que se desfaçam as desvantagens históricas, sociais e econômicas forjadas para subalternizar os sujeitos negros; amplia as desvantagens sociais ao tipificar identidades políticas pelas molduras da brancura. Trata-se, nesses termos, de uma tecnologia colonial que, da modernidade até aqui, se nutre de ideologias hegemônicas e coalizões políticas que reforçam um projeto de mundo que banaliza a humanidade de sujeitos negros.

Ao analisarmos a branquitude como um sistema político, enquanto circuito de poder forjado para reafirmar um ethos colonial, somos capazes de refutar as suas dinâmicas de dissimulação. Essas dinâmicas consistem na reiterada farsa da localização, no esforço de racializar sujeitos negros, por exemplo: encobrindo a formação de identidades que não se percebem situadas e, ao mesmo tempo, não se responsabilizam pelos efeitos destrutivos da estigmatização de corpos grifados como “os outros”.  Ademais, esses panoramas corrosivos que dão forma à branquitude se instalam também na afirmação da universalidade.

Ao designar os sujeitos brancos como universais, os protagonistas da história e o padrão, a branquitude faz com que essas identidades sejam consideradas opostas aos sujeitos subalternizados, que, nesse caso, são lidos como os específicos. Enquanto valor, norma e ideologia, a branquitude conforma todas as nossas percepções para adequar vida e brancura sinalizando corpos não-brancos como simulacro da existência humana, como presenças inóspitas que, nesse circuito de comparação, balizado pela raça, são objetificadas. As críticas antirracistas dizem sobre a importância de marcar o não marcado, de desintegrar as coalizões estabelecidas politicamente que, de modo técnico e ideológico, conferem naturalidade às hierarquias e desvantagens raciais.

A raça, condição pela qual se constrói na modernidade fluxos de contínua dessubjetivação, opera como instrumento das políticas de morte. Pensamos que a branquitude, enquanto sistema de poder e não como indivíduos particulares, reverbera o compromisso tecnopolítico colonial de construir o outro absoluto, o inimigo e, a partir dessa constituição, desabilitar qualquer traço de humanidade, justificando, assim, a sua aniquilação. É fundamental, para que sejamos capazes de avançar nas lutas antirracistas, que desfaçamos as fronteiras entre as identidades. As identidades são produzidas na relação. Assim, a branquitude, enquanto maquinário destrutivo, faz com que sujeitos negros confrontem sistematicamente imagens de desautorização. É igualmente importante denunciar a farsa moral da branquitude que executa a humanidade de sujeitos não-brancos para reafirmar sua autoridade política.

Lemos, nesses termos, que a raça não encontra fundamento na biologia, mas, comprova as funções multiarticuladas das políticas de terror que se atualizam de forma técnica fazendo com que corpos sejam sequestrados de sua humanidade e, nesse prisma, submetidos às margens sociais. Logo, a cor da pele e o corpo de sujeitos negros são estigmatizados, a partir de um sistema valorativo afinado com a desautorização da diferença, princípio nevrálgico da colonialidade.

Sistema vivo que, independentemente de classe social, concede privilégios visíveis e invisíveis aos sujeitos que se blindam nas suas fronteiras, a branquitude funciona independente da vontade consciente das pessoas beneficiadas por sua arquitetura. Embora seja necessário desconfiar da inocência em relação aos privilégios concedidos pela brancura da pele, sobretudo, numa realidade amplamente racista como a nossa. Não queremos grifar apenas a importância do acesso às teorias sobre a branquidade, mas enfatizar a relevância, ética, política e disruptiva em relação ao lugar confortável que a brancura confere aos sujeitos não marcados, assumindo, assim, uma posição crítica.

Pessoas negras, em especial as mais escuras, que hoje tem por volta de 25 a 35 anos, tiveram sua vida marcada pelo ideal de beleza, por exemplo, imposto pelas assistentes de palco da apresentadora Xuxa. Elas tinham os cabelos loiros, a pele clara, os olhos azuis e contribuíam com o projeto estético-político que distanciou os sujeitos negros, em específico, as mulheres negras, do ideal de beleza. Nesse ponto, nós podemos exemplificar como a identidade negra foi forjada na insegurança da não aceitação fenotípica de seus traços negroides.

É preciso pontuar, nesse mesmo sentido, que existem outras formas pelas quais a branquitude deteriora a autoestima de sujeitos negros. Esse processo de desintegração perpassa pelas esferas: intelectuais, morais, publicitárias e ideológicas, que reafirmam o eu — branco, masculino e ciseteronormativo. Todo ideal de excelência orbita na humanidade que, nesse prisma, associada à brancura, se torna inalcançável para pessoas negras. Grada Kilomba, em seu livro Memórias da plantação, descreve como a mulher negra é vista como o outro do outro. É a partir dessa reflexão que devemos pensar como a brancura é critério desleal de seleção e de construção do sujeito negro. A dissimulação da branquitude sobre como esse sistema que é político favorece algumas identidades em detrimento de outras também é uma forma de preservar a supremacia branca e dificultar o questionamento sobre sua existência e violência.

A branquitude é um pacote de privilégios destinados a centralizar politicamente os sujeitos brancos independentes de sua classe, do seu gênero e da sua sexualidade (não se negue que gênero, raça e classe, mudam o lugar de privilégio dessas pessoas). A pele branca, dadas as suas localizações numa sociedade calcada no racismo antinegro como a nossa, confere mais ou menos acessos, o que nos faz pensar na branquitude como um complexo representativo que se materializa em fronteiras políticas, apequenando as oportunidades materiais e imateriais de sujeitos negros. Ao denunciarmos a tecnicidade de poder que sustenta a branquitude, assumimos uma posição ética que implode a redoma de poder que ela cria, para proteger sujeitos brancos, ao se nutrir da violência e da discriminação.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio