A cadeia de custódia das provas digitais no direito administrativo sancionador

A cadeia de custódia das provas digitais no direito administrativo sancionador

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PARTE 1

Quase nunca vale a pena entrar em fofoca das celebridades. Porém, neste caso, sem precisar recorrer ao nome dos envolvidos, em nome da didática pelo exemplo de casos reais e acessíveis, resolvi abrir uma exceção. Me perdoem.

Trata-se de polêmica envolvendo jogador famoso e uma suposta traição matrimonial, já que o jogador estaria com outra mulher em determinada residência. Não há fotos dos dois juntos, mas a “prova” da traição seria justamente fotos dos dois no mesmo local, uma casa de luxo. O encontro teria ocorrido após a suposta amante ter recebido um convite de cortesia do próprio jogador para assistir a um de seus jogos. O jogador negou a traição.

Não é de se negar que os indícios pendem para o lado de que houve traição, a hipótese acusatória, em termos mais técnicos. Não demorou, contudo, para que surgissem versões em defesa do jogador, como a de que ele terceirizava o trabalho de distribuir cortesias. Porém, a contra hipótese mais significativa, e que importa para nós, é a alegação de que as fotos dos dois no mesmo local não seriam do mesmo dia.

Eventual prova da versão de que as imagens do jogador e da suposta amante foram tiradas em dias distintos construiria argumento suficiente a desmontar a hipótese acusatória, já que sua principal evidência era justamente as tais fotos no mesmo local.

Enfim, mais informações sobre o caso são irrelevantes. Agora, imaginemos tratar-se de um processo administrativo no qual se questiona a moralidade de um ato praticado por servidor público (é claro que não relacionado a matérias sem interesse público, como traição matrimonial).

A quem compete a prova do alegado? Alguns poderiam argumentar que o ônus da prova deve recair sobre quem alega, de modo que ao jogador que deveria recair a obrigação de provar que as fotos tiradas não seriam do mesmo dia. No entanto, isso não é nada razoável. Para além de constituir prova diabólica, prova do impossível ou prova sobre o que está à disposição da parte contrária, a prova deve recair sobre quem acusa.

Direito administrativo sancionador é diferente de direito processual penal. Isso é verdade, porém, a lógica sobre a presunção de inocência e seu derivado principal – ônus da prova a quem acusa – deve ser a mesma nas duas áreas.

Provar não é somente lançar uma hipótese a partir de evidências. Por mais que a hipótese acusatória seja razoável a princípio, sua confirmação, necessária para condenação, deve ser tal que suplante de maneira razoável e sólida as versões defensivas. Afinal, as decisões em processos de natureza punitiva devem ter como norte a mitigação de injustiças e do arbítrio.

Além da resolução de um conflito em dado caso concreto, um processo deve se preocupar também com o alcance geral e, em certo grau, abstrato de seus usos e resultados. Uma decisão condenatória baseada em conjunto probatório frágil e de origem duvidosa, ainda que considerada justa no caso concreto, pode contribuir para um quadro de insegurança e de sensação geral de arbítrio e imprevisibilidade.

No fim das contas, uma pessoa inocente não deveria temer um processo. A confiança na Justiça de uma pessoa acusada injustamente é um valor da mais alta conta.

 

PARTE 2

Sobre o assunto, podemos apontar dois fenômenos: a judicialização dos procedimentos administrativos sancionadores e a permeabilidade e incidência das categorias do direito processual penal sobre o direito administrativo sancionador (DAS).

O primeiro é muito amplo e complexo para se ousar aqui elucidar. Já o segundo não é por acaso, pois o processo penal tem realmente se sofisticado bastante, de modo que suas categorias e institutos não são apenas meros formalismos processuais destituídos de significado. Ao contrário, um maior apego ao formalismo legal e às garantias constitucionais tem sido um reflexo de estudos sérios e casos reais de flagrantes injustiças.

Um desses institutos é o da cadeia de custódia. “Cadeia de custódia” significa o cuidado sobre o percurso dos objetos de prova ao longo do processo. Isso inclui, principalmente, a transparência e controle a respeito da coleta, transporte, processamento e armazenamento, entre outros, dos objetos de prova.

A regulação legal sobre a cadeia de custódia no processo penal foi inserida no Código de Processo Penal (CPP), no art. 158-A e seguintes, no final de 2019, com o Pacote Anticrime, Lei nº 13.964/19.

Diz o artigo 158-A: “Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência).

O texto próprio do dispositivo legal já nos remete à história que nos guiou no começo deste post. Com ele, sobre o caso do jogador, poderíamos perguntar, entre outras possíveis questões:

  1. Quem tirou as duas fotos em questão?
  2. Qual a fonte de coleta para juntada nos autos?
  3. Há metadados nas fotos que nos permitam dizer a hora, dia, bem como o aparelho em que foram tiradas?

Veja que, se a acusação, que juntou as fotos como evidência, conseguir trazer respostas sobre o dia e hora em que as fotos foram tiradas, muito pouco pode haver de espaço para a defesa. A demonstração do percurso dos indícios comprometedores, às vezes mais do que eles mesmos, é justamente o que pode dar a segurança necessária para o julgamento, seja para um lado, seja para o outro. Reside aqui o sentido material da cadeia de custódia da prova.

 

PARTE 3

Após analisar alguns julgados do STJ, cheguei a algumas conclusões, que sintetizo abaixo.

A primeira constatação que trago, e talvez a mais significativa é a de que, embora a lei da cadeia de custódia não tenha explicitamente se voltado para as provas digitais, ela tem sido utilizada também para garantir a higidez desse tipo específico de prova. Ou seja, a lei da cadeia de custódia também deve orientar a pessoa aplicadora do direito sobre as provas digitais, inclusive no âmbito do direito administrativo sancionador.

Afinal, menos do que a forma da lei, é seu conteúdo que importa. A forma é só uma maneira segura de garantir o seu propósito. E sobre as provas digitais é igualmente importante, juntamente aos objetos de provas materiais, o trabalho de cuidado sobre seu percurso probatório, como vimos no caso pitoresco do jogador.

a) Embora sejam raros os casos, a quebra ou o desrespeito à cadeia de custódia pode gerar nulidade do processo;

b) A nulificação não é automática, exigindo-se comprovação do prejuízo para a parte, no caso o réu, pelo princípio do pas de nullité sans grief, o princípio do prejuízo;

c) O princípio do prejuízo é um tanto quanto arbitrário e de difícil configuração. Ao réu condenado, especialmente, é difícil provar o prejuízo.

  1. o princípio do prejuízo no processo amplia os poderes do juízo e colabora para mais insegurança jurídica. Inclusive, gera discrepâncias entre casos similares, com violação ao princípio da igualdade. Uma decisão favorável ao réu pode ser mais um efeito de questões extra-autos e ocultos do que de fato processuais.
  2. o princípio do prejuízo é oriundo da teoria geral do processo e pode ser vinculada à doutrina substancialista do processo penal. É oposta à teoria garantista ou formalista.
  3. a doutrina formalista parte do pressuposto de que a violação da norma – como a quebra da cadeia de custódia – sempre gera prejuízo, por presunção. Sendo assim, quem deve afastar a presunção de prejuízo é a autoridade que violou a lei, dizendo que tal violação não foi significativa e não afetou o deslinde da causa, tampouco os princípios processuais.
  4. no direito administrativo, vale-se muito da presunção de legitimidade dos atos. Porém, cuidado! Em termos de provas, não faz sentido falar em presunção. Uma coisa é um atestado, uma certidão ou um ato qualquer, no âmbito do direito administrativo, outra coisa é a conclusão, a partir da análise racional de provas, sobre se determinado fato ocorreu ou não. Em matéria de prova no processo, seja qual for, não há presunção, mas convencimento sobre a verdade fática, a partir de elementos de prova.

d) Embora o princípio do prejuízo seja um tanto quanto aberto e imprevisível, quando se fala em cadeia de custódia da prova digital, fala-se basicamente de:

  1. integridade e autenticidade da prova.
  2. integralidade da prova, pensada em termos de suficiente para o exercício do contraditório e da ampla defesa.
  3. ausência de mácula significativa sobre o resultado final da prova. Isto é, a violação da cadeia de custódia não é capaz de impor dúvida para além do razoável sobre a interpretação que se faz da prova, sob pena de o sistema sucumbir a formalismo exacerbado e paralisante, sem sentido ou conexão com os objetivos gerais do processo.
  4. equilíbrio do livre convencimento motivado com o rigor às formas legais.
  5. existência de provas independentes, que se orientam de modo geral no mesmo sentido da prova questionada.

A quem decide e produz a prova no âmbito do direito administrativo sancionador, é sobre esses últimos pontos que mais devem se concentrar os esforços.

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