No informativo de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de número 819, a Terceira Seção da Corte delimitou importantes pontos ligados à confissão extrajudicial no processo penal. Será aproveitada esta ocasião para se revisitar algumas notas teóricas sobre esse meio de prova e como o STJ aborda atualmente a temática.
A confissão é compreendida, doutrinariamente, como meio de prova típico consistente na admissão da veracidade da imputação da prática da infração penal (Brasileiro, p. 768). Quem confessa é o sujeito diretamente prejudicado pela admissão, livre de qualquer constrangimento e ciente dos efeitos de sua prática no horizonte da formação da culpa. Trata-se de “uma das modalidades de prova com maior efeito de convencimento judicial” (Pacelli, p. 517) e que já foi considerada, segundo o sistema de provas tarifadas, como a “rainha das provas”, mas que hoje é cercada de relativização em prol dos direitos e garantias fundamentais.
A confissão pode ser judicial ou extrajudicial, a depender se empreendida ou não no âmbito do processo penal, perante a autoridade judicial. Uma miríade de altercações circundam a confissão extrajudicial, considerada, em algumas situações, como fundamento para condenação e, obviamente, possível geradora de erros judiciários irreparáveis.
Uma prática nada incomum é a “certificação” da confissão extrajudicial em audiências de instrução por policiais depoentes, que atestam tanto a sua ocorrência, quanto seu conteúdo e abrangência. A presunção de veracidade que toca atos administrativos é estendida por conveniência do aparato persecutório ao campo penal, em um loop de desvirtuamento dos princípios inerentes ao processo penal democrático e a consolidar um padrão cognitivo confortável ao órgão julgador a quem é endereçado o testemunho policial. Como afirma Matida (2020), “concede-se um irracional e antidemocrático protagonismo probatório à palavra do policial”.
E é justamente no momento do contato direto com agentes policiais, em uma ambiência essencialmente inquisitória, longe do controle externo das práticas policiais, que abusos podem ocorrer; a interface entre a prisão em flagrante e a confissão destituída de garantias formais mínimas de lisura de sua obtenção proporciona um severo tensionamento entre a confiabilidade (dessa admissão) para fins de prova futura (portanto, sujeitável ao contraditório e à ampla defesa) e a avidez pela resolução do caso.
Nesse locus da confissão extrajudicial, incide a ideia de injustiça epistêmica agencial (Fricker, 2017; Dantas; Motta, 2023), de forma que a confiabilidade das declarações do imputado ou do acusado cresce à medida que se reduz sua capacidade de autodeterminação (agência). Em contrapartida, quanto maior sua autodeterminação (como, por exemplo, assistido por advogado, livre de coações em um processo público etc), menor a confiabilidade de suas declarações (como se pode inferir em retratações posteriores a confissões extrajudiciais).
É sabido que a confissão perdeu sua hegemonia e seu absolutismo no esquadro das provas, passando a ser valorada racionalmente, segundo critérios e lindes lógicos talhados desde outros elementos probatórios, sob a dimensão bidirecional se entre ela (a confissão) e estes (outros elementos de prova) existe compatibilidade ou concordância (art. 197, do CPP). Há de se sinalizar que “nunca um conjunto de elementos de juízo, por maior e mais relevante que seja, permitirá ter certezas racionais sobre a verdade de uma hipótese” (Ferrer-Beltrán, 2021, p. 133).
Mas nem sempre é tão próxima à realidade a aplicação dessa intencionalidade. Lopes Jr. (2021, p. 195) adverte para a prática de redimir a confissão policial extraída mediante tortura como prova válida ao cotejá-la com outros elementos de prova, para condenar o acusado, em manifesto atentado aos escopos democráticos que incidem (ou deveriam incidir) no processo penal.
O silêncio do acusado não corresponde à confissão, não obstante tenha idoneidade de contribuição para a formação da convicção do julgador (art. 198, do CPP). Ademais, a confissão poderá ser divisível (ou seja, o acusado pode admitir a imputação em relação a uma fração do conjunto fático) e retratável (poderá se desdizer a qualquer momento), sem prejuízo do livre convencimento do juiz, porém sempre fundada em outros elementos de prova (art. 200, do CPP). O exame de corpo de delito (direto ou indireto) é indeclinável ainda que o réu confesse na hipótese de o crime deixar vestígios (crimes não transeuntes), conforme art. 158, caput, parte final, do CPP.
De toda forma, a confissão extrajudicial, tratada no art. 199, do CPP, exige, por ser empreendida fora do interrogatório (isto é, tomado por quem não seja a autoridade judicial e submetida ao contraditório e à ampla defesa), sua redução por termo, revestindo-se de uma formalidade mínima duplamente garantidora de eficácia probatória e de observância aos direitos humanos do confitente.
Sem se descolar do contexto brasileiro, de acentuada violência policial, endereçada, genericamente, a meninos e rapazes negros (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024)1 , olhar criticamente para a confissão extrajudicial como um locus de recrudescimento de risco à integridade desse grupo racial é uma obrigação funcional que precipita sobre as instituições públicas diretamente ligadas ao sistema de justiça criminal. As más escolhas políticas de segurança pública devem ser sanadas casuística e ininterruptamente, para coincidir os escopos do funcionamento da engrenagem persecutória com os princípios e regras minimamente assecuratórios dos direitos e garantias fundamentais.
Ademais, o inflexível valor da dignidade serve, metaforicamente, como um assoalho ético sobre o qual o Estado deve agir. Direitos humanos e propósitos persecutórios são duas facetas que devem cingir-se mutuamente, numa correlação resultante não apenas de uma decorrência lógica desde normas constitucionais e convencionais, mas igualmente de uma decorrência factual. Esse protótipo performativo das instâncias de persecução criminal – que executam simultaneamente missões de proteção de direitos humanos do acusado e de aplicação do Direito Penal – deve consubstanciar o método de suas respectivas intervenções.
Dentro dessa racionalidade que permeia o ideal e o real, não basta a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos que reveste a atuação policial, mas a certeza de sua veracidade e legitimidade como solução para o enfrentamento de abusos e de rebaixamento do limite ético que acompanha o processo penal.
Como apontam Dantas e Motta (2023), o Min. Ribeiro Dantas, do STJ, foi quem introduziu o tema na jurisprudência superior entre 2021 e 2022, agora contornado pelas teses fixadas no no Agravo em Recurso Especial n. 2.123.334/MG, recentemente publicado no Informativo 819, do STJ.
Com esse olhar, o STJ fixou três importantes teses no citado AResp 2.123.334/MG, a saber:
A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu);
A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao Ministério Público possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória;
A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP (Brasil, 2024).
Dessa forma, a confissão extrajudicial, ainda que replicada na fala de policiais testemunhas, se não formal e documentalmente colhida (art. 199, do CPP), dentro de um estabelecimento estatal público e oficial, será inadmitida como meio de obtenção de prova no processo judicial, sem possibilidade de renúncia por parte do confitente. A relatividade da confissão é salientada à vista do art. 197, do CPP, à vista de elementos probatórios outros existentes.
Trata-se de importantes contornos advindos da jurisprudência do STJ, que refletem o compromisso do Judiciário com a tutela de direitos humanos na dimensão processual penal. Cabe às instâncias jurisdicionais inferiores se submeterem a eles e agirem proativamente na luta contra a violência policial nossa de cada dia.
Notas
____________________
1. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), a letalidade policial aumentou 188% desde 2013, com risco relativo de uma pessoa negra morrer por intervenção policial é 3,8 vezes maior do que pessoas não negras. Entre o grupo de vítimas da letalidade policial, 82,7% são negros, 71,7% são jovens entre 12 a 29 anos de idade e 99,3% são do sexo masculino. Em contrapartida, Em 2024, houve o aumento de 26,2% de suicídio de policiais e redução de 18,1% assassinatos desses agentes. Dentre os policiais mortos, 69,9% eram negros, entre 51,5% entre 35 e 49 anos de idade e 96,6% do sexo masculino (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024).
Referências
____________________
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AResp nº 2.123.334/MG. Relator: Min. Ribeiro Dantas. Terceira Seção, julgado em 20/6/2024, DJe de 2/7/2024. Brasília, 2 jul. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 15 ago. 2024;
DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro; MOTTA, Thiago de Lucena. Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 1, p. 129-166, jan./abr. 2023. Disponível em: site. Acesso em: 13 ago. 2024;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2024. Disponível em: site. Acesso em: 19 ago. 2024.
FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Salvador: Ed. JusPodivm, 2021;
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020;
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2019;
MATIDA, Janaína. O valor probatório da palavra do policial. Trincheira democrática. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Ano 3, n. 8, abril de 2020, p. 48-52;
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020;