A Criança Refugiada e a Semente do Amanhã

A Criança Refugiada e a Semente do Amanhã

É estarrecedor acompanhar o andamento dos acontecimentos políticos na Ucrânia, é ainda inconcebível pensar que em pleno século XXI, depois de duas guerras mundiais, estamos à beira de uma terceira guerra de proporções nucleares.

A cada novo conflito armado, novas barbáries são cometidas e os povos sobreviventes são obrigados a emigrar de seu país. As crianças, nesse contexto, são as mais desprotegidas e as mais compelidas ao sofrimento. Quando não perdem rapidamente suas vidas, são lançadas a uma debandada na busca pela sobrevivência. Nessa corrida pela vida, perdem sua infância, suas raízes, seus laços familiares e muitas perdem suas famílias inteiras.1

Recentemente acompanhamos movimentos migratórios provenientes da Síria, da Venezuela, do Haiti e da Colômbia, no Brasil temos cerca de 1,3 milhões de imigrantes residentes, ou seja, nos últimos dez anos, tivemos um aumento de 24,4% no número anual de novos imigrantes registrados no país.2

Temos visto uma crescente onda de conflitos armados e lamentamos o fato de que as nações não envolvidas diretamente permanecem em seu discurso retórico em torno do que deveria ser feito em prol das crianças vítimas da guerra; porém, conforme a origem do refugiado, mantêm suas fronteiras e corações fechados para a cruciante realidade imposta a essa nova geração.

As crianças migrantes, quando se tornam órfãs da guerra, passam a ser de responsabilidade das ONGs, que lidam diretamente com este pequeno migrante. Ao serem realocadas de países, as crianças recém-chegadas por vezes não falam a língua nacional, tampouco têm real consciência de seu destino, estes pequenos buscam seus pais biológicos, buscam qualquer rosto familiar, mas nada encontram.3

Esse fato preocupa as autoridades do país que recebem esta criança, no Brasil por exemplo, a proteção da criança está prevista na Lei n. 8.069/1990 (ECA) e coloca a Justiça da Infância e da Juventude como órgão competente para dirimir questões relativas à tutela de crianças e adolescentes, os quais têm seus direitos violados ou ameaçados por ação ou fala da sociedade e do Estado.

A despeito do Direito brasileiro privilegiar os laços consanguíneos entre os menores e seus familiares nos casos de tutela, para a criança migrante com status de refugiada isso, a princípio, não é possível, visto que ela chega sem passaporte ou qualquer acompanhante responsável.

Assim, até meados de maio de 2017, a criança refugiada era encaminhada para ficar sob a guarda da diáspora ou de famílias voluntárias pelas quais era acolhida, e havia uma espécie de tutela fática ou tutela irregular; a tutela regular só se dava após a entrada dessas crianças no Conselho Tutelar, que, depois de realizar uma procura pelos pais por meio de organismos governamentais, iniciava o encaminhamento do caso ao Poder Judiciário.

Esses menores migrantes com status de refugiados são equiparados em princípio aos menores abandonados, pois ambos não têm tutores. Essas crianças em estado de abandono muitas vezes têm sua tutela funcional4  concedida a ONGs ou a famílias voluntárias. Até um posterior encaminhamento para o processo de adoção.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, relativa à proteção da criança, traz inúmeros direitos da pessoa humana, os quais são as crianças e adolescentes, e seus artigos XXV e XXVI destacam-se por serem dirigidos especificamente aos interesses dos menores.5

Nesses artigos da DUDH, foi proclamado que a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais e, ainda, que todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. No entanto, a gama de direitos trazida pelo documento obviamente é extensiva aos infantes, direitos que visam à proteção da pessoa humana, à liberdade e à paz mundial.

A Declaração Universal dos Direitos da Criança foi idealizada diante da premência de garantir às crianças proteção e cuidados especiais para o seu integral desenvolvimento. Esta declaração, dirigida apenas aos direitos das crianças, tem por objetivo ratificar e efetivamente proporcionar proteção especial à criança, como já havia sido enunciado anteriormente na Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, e na Declaração sobre os Direitos da Criança.

Outros instrumentos que também visam proteger as crianças são o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966 (arts. 23 e 24), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também de 1966 (art. 10), bem como os estatutos e instrumentos relevantes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem-estar da criança.

Vale citar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, ratificada no Brasil em 6 de novembro de 1992, a qual resguarda os direitos destinados às crianças de uma forma geral, e em seus artigos 4º e 19º discorre sobre a proteção do menor e seu direito à vida (desde o momento da sua concepção, proibindo o aborto).

Poderia ainda elencar muitos outros tratados e convenções internacionais sensíveis ao tema, por exemplo, a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional – Convenção de Haia.

Porém, no Brasil poucos dos Tratados Internacionais relacionados à proteção da criança refugiada tem efetividade prática, mesmo a Constituição Federal de 1988 prevendo como direito fundamental a proteção e o dever de cuidados com os menores é incapaz de retirar das ruas e do desamparo milhares de crianças que se encontram nesta situação, quiçá dar conta das crianças migrantes.

As consequências projetadas em virtude dos abandonos impostos a estas crianças geram impactos, os quais terão suas consequências projetadas no tempo. É comprovado que a preservação dos aspectos psicológicos da criança durante o seu crescimento é fundamental, entre o nascimento e a maioridade o pleno desenvolvimento cognitivo e da personalidade dependerão de inúmeros fatores, mas podemos citar, devido ao seu grau de importância, os aspectos cognitivos e sociais.

Os seres humanos que durante a fase de sua formação acabam por se desenvolver com a presença de transtornos emocionais ou presença de neuroses infantis deixam de desenvolver-se saudavelmente e passam a contar com graduais mudanças no comportamento e lacunas severas na aquisição das bases de sua personalidade.

As crianças refugiadas sofrem pelo abandono material, o que por óbvio gera consequências ao desenvolvimento físico do menor, que não terá acesso aos meios materiais para nutrir, conservar e crescer em plenitude, fato este que, conforme a graduação deste abandono, pode acarretar problemas no desenvolvimento intelectual e cognitivo do menor e o acompanhará até o fim de sua vida.

Vítima do abandono intelectual, a ruptura da vida, em circunstâncias devastadoras, certamente atrasará o infante em seu ensino pedagógico escolar, que ficará atrasado quando comparado com o de outras crianças com a mesma faixa etária, mas este abandono tem a possibilidade de reversão total, ainda que tardia.

E claro, sofre pelo abandono afetivo6 que, por sua vez, é o evento tão danoso ou mais entre os acima listados, na medida em que esta projeção do abandono ultrapassará gerações. A psicanálise coloca a importância da presença da mãe ou daquele que se encontre em seu lugar como fundamental na formação do sujeito da criança, pois é por meio desse espelho formado pelo Outro que a criança vem desejar ser.7 A ausência desse Outro promoverá naquele uma busca incessante deste Outro, por uma tentativa ilusória de sua completude.

Desta feita, para a psicanálise,8 nada além do próprio afeto será capaz de ser um substituto à altura do Outro faltante, sendo projetado como resposta pelo trauma diante do abandono afetivo, uma falta danosa, mas perpétua, da negativa da completude do sujeito, do seu gozo, de sentir-se amado, o que por sua vez se projetará nas gerações futuras, filhas das crianças, vítimas da guerra e de seus abandonos.

As crianças refugiadas são parte da futura sociedade global e necessitam rapidamente ser resgatadas do abandono em que se encontram. Caso a sociedade permita a perpetuação desses eventos, certamente contribuirá para a construção de uma futura sociedade defeituosa, malformada, repleta de cicatrizes emocionais. Se dependemos das futuras gerações para a continuidade da nossa espécie, por que a sociedade pós-moderna não protege as sementes do amanhã?

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Fernanda Las Casas

 

Referências

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1. OLIVEIRA, Maria Fernanda César Las Casas. VITORINO, Cleide Aparecida. A criança migrante com “status” de refugiada no Brasil e a projeção de seus abandonos. In: Direitos Humanos: diálogos ibero-americanos. MEDINA, Javier Garcia; ISHIKAWA, Lauro; REPRESA, Marcos Sacristán; MATSUSHITA, Thiago Lopes (Coord.) VELLOZO, Julio César Oliveira; ISHIKAWA, Lauro; FILHO, Marco Aurélio Florêncio (org.), Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 395-415.

2. AGÊNCIA BRASIL. Número de novos imigrantes cresce 24,4% no Brasil em dez anos. Publicado em 07.12.2021. Agência Brasil, Brasília. Disponível em:  https://bit.ly/369ZiMf. Acesso em: 06 mar. 2022.

3. BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (Org.). Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010.

4. “Art. 1.734. As crianças e os adolescentes cujos pais forem desconhecidos, falecidos ou que tiverem sido suspensos ou destituídos do poder familiar terão tutores nomeados pelo Juiz ou serão incluídos em programa de colocação familiar, na forma prevista pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente” (Redação dada pela Lei n. 12.010, de 2009).

5. ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://bit.ly/3HYNny3. Acesso em: 06 mar. 2022.

6. LEITE, Rodrigo. Abandono afetivo x dever jurídico de cuidado (notas sobre os ERESP 1.159.242/SP). Disponível em: https://bit.ly/3hWXHw7. Acesso em: 06 mar. 2022.

7. BRAGA, Júlio Cezar de Oliveira. Abandono afetivo: do direito à psicanálise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

8. BRAGA, Júlio Cezar de Oliveira. Abandono afetivo: do direito à psicanálise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

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