Muito se fala sobre o enfrentamento da violência doméstica e familiar, entretanto, é recorrente observar que, ao referir-se à violência doméstica, há uma propensão maior em associá-la primariamente à agressão física, ignorando a existência de outros tipos de violência doméstica igualmente presentes e que também são capazes de deixar marcas, ainda que não sejam visíveis, na vítima.
Importante consignar que a doutrina, atenta ao conceito legal, define violência doméstica como sendo:
Agressão contra a mulher, num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com finalidade específica de objetá-la, isto é, dela retirar direitos, aproveitando da sua vulnerabilidade.
De acordo com a Lei 11.340/06, podem ser elencadas como formas de violência doméstica contra a mulher: a física; a psicológica; a sexual; a patrimonial e a moral.
Neste ponto cumpre ressaltar que a Lei Maria da Penha, em seu art. 7º, utiliza a expressão “entre outras”, deixando claro que as hipóteses de violência doméstica contra a mulher não são taxativas, podendo haver o reconhecimento de outras ações que configurem situação de violência.
Este artigo se limitará a abordar somente as questões relativas à violência doméstica na modalidade patrimonial, que é, muitas vezes, inserida em um âmbito de aceitação social em razão do contexto social que estamos inseridos, caracterizado majoritariamente por um viés patriarcal, resultando em menor incidência de denúncias, merecendo maior atenção por parte dos órgãos de proteção responsáveis, principalmente do Poder Judiciário.
Conforme disposto na Lei Maria da Penha, a violência doméstica patrimonial pode ser entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Nos conflitos conjugais, a violência doméstica patrimonial se revela precipuamente através da destruição de bens materiais e objetos pessoais ou da sua retenção indevida, bem como através de ameaças no sentido de deixar a vítima sem nada e de não “dar o divórcio”, com o objetivo de coagi-la a permanecer na relação.
Ressalta-se que a violência patrimonial não ocorre apenas dentro do casamento (a atriz Larissa Manoela é um exemplo claro de violência patrimonial fora do matrimônio), entretanto, revela-se especialmente em relações conjugais nas quais existe uma assimetria de poder econômico, onde o cônjuge virago é detentor da administração patrimonial de todos os bens e acaba utilizando dessa prerrogativa como forma de controle.
Acerca dos prejuízos decorrentes da violência patrimonial, Didier destaca que:
(…) não só a venda do patrimônio comum pode causar prejuízo à ofendida; também a compra de bens pode ensejar a sua ruína. É válido lembrar que o art. 1.643 do Código Civil autoriza os cônjuges a, independentemente de autorização um do outro, (i) comprar, ainda que a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica, e (ii) obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir. Em complemento, o art. 1.644 diz que as dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges. Daí a importância da vedação, pelo juiz, da celebração de contratos de compra, sobretudo quando importar dispêndio de vultosa quantia. Por fim, a locação dos bens comuns também pode ser vedada, principalmente a locação de imóvel urbano comum, que, em regra, independe de autorização do cônjuge, salvo se celebrado o contrato por prazo igual ou superior a 10 anos (art. 3º, Lei Federal n.º 8.245/1991)
Recentemente a apresentadora Ana Hickman, a cantora Naiara Azevedo e a empresária Susana Werner, que são figuras públicas conhecidas por serem independentes financeiramente através dos seus trabalhos, foram vítimas de violência doméstica patrimonial, evidenciando um abuso financeiro perpetrado pelos seus respectivos companheiros.
O que nos alerta para o fato de que não existe limites de classe social ou de etnia, quando se trata de violência doméstica, ainda que na modalidade patrimonial.
As vítimas desse tipo de violência se veem obrigadas a permanecer nas relações conjugais por inúmeras razões – até mesmo por questões religiosas ou sociais – mas principalmente pelo receio de “sair com uma mão na frente e outra trás” o que denota uma dependência financeira, mesmo em situações que o patrimônio foi construído por ela.
Conforme pontua Scarance, a vergonha, a crença na mudança do parceiro, a inversão da culpa, o medo de reviver o trauma e a revitimização pelas autoridades policiais e judiciárias, também são fatores que contribuem pela permanência da vítima nas relações conjugais e pelo seu silêncio diante da violência praticada.
Dito isto, é necessário destacar a importância do papel do Poder Judiciário no que tange ao amparo adequado dessas vítimas, para que também não se transforme em um agressor, perpetuando essa violência, acarretando em uma situação de revitimazação.
Essa situação manifesta-se de modo perceptível nas Varas de Família, sobretudo no decurso das Ações de Divórcio e dissolução de união estável. Nesse contexto, observa-se que a vítima, ao propor a ação, depara-se frequentemente com a recusa do pleito de assistência judiciária gratuita, sem uma análise aprofundada do caso concreto. Tal recusa pode ocorrer em virtude da titularidade de bens em seu nome, mesmo quando são apresentadas evidências da existência de medidas protetivas decorrentes da violência experimentada e de que a administração dos bens é exercida de maneira exclusiva pelo então agressor.
Necessário ressaltar que a violência patrimonial, tal como delineada na Lei Maria da Penha, encontra-se correlata aos demais delitos contra o patrimônio estabelecidos no Código Penal, devendo, portanto, ser abordada de maneira consonante. Todavia, é plenamente possível a sua discussão no âmbito cível e familiar.
Ou seja, para além das repercussões jurídicas no âmbito criminal, é plenamente possível a postulação de medidas proteção ao patrimônio da vítima, abarcando não apenas a salvaguarda da divisão dos bens no contexto da sociedade conjugal, mas também dos bens particulares, as quais podem ser adotadas em caráter liminar no juízo cível.
Não obstante, para que isso aconteça, a vítima necessita de ter fácil acesso ao poder judiciário, o que, na prática geralmente não ocorre. Conforme já mencionado, a vítima se depara novamente com um obstáculo financeiro que é o alto valor das custas processuais em razão da existência de bens a partilhar, mas que, no entanto, não encontram-se sob o seu poder.
Nos termos do artigo 5º, XXXV da CRFB/88, o benefício da gratuidade de justiça é, indiscutivelmente, um consectário do princípio constitucional processual do “acesso à jurisdição”. Após o advento do CPC/2015, que passou a regular as condições para concessão do benefício em seus artigos 98 a 102, revogou-se parcialmente o sistema disciplinado pela Lei nº. 1.060/50.
O disposto no artigo 98 do CPC é aplicável a toda pessoa natural, jurídica, ou ente despersonalizado, que se encontre necessitado, ou seja, cuja situação econômica não lhe permita pagar custas do processo e honorários advocatícios, sem redundar em prejuízo para o seu sustento e o de sua família.
Sabe-se que não é exigida a condição de miserabilidade, assim como tampouco estabelece a lei uma renda mínima para que se tenha direito ao benefício e, mesmo assim, nos deparamos diariamente com decisões de negativa da concessão do benefício ao argumento de que “não foi comprovada a condição de miserabilidade”.
A título de exemplo, recentemente, nos autos de uma Ação de Dissolução de Sociedade, mesmo após a vítima narrar e comprovar, por meio de documentos e decisões judiciais, a existência de medida protetiva devido a violência patrimonial e psicológica, e de que o agressor se encontra detido pelo descumprimento desta ordem judicial, bem como da existência de uma ação de divórcio, e apesar de constar no quadro societário da empresa a ser dissolvida, jamais participou da gestão ou das atividades empresariais, sempre dependendo financeiramente do cônjuge, o qual inclusive era responsável pela movimentação das contas bancárias, foi lhe negado o benefício da gratuidade da justiça.
Diante da decisão emanada do juízo a quo, foi interposto Agravo de Instrumento, o qual tramitou perante a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Minas Gerais, sob o nº. 1.0000.23.194859-7/001, de relatoria do Desembargador Gilson Soares Lemes, o qual corroborou a decisão proferida pelo magistrado ao indeferir o benefício à vítima, nos seguintes termos:
Assim, não comprovado o estado de miserabilidade da agravante, apto a permitir a concessão do benefício de assistência judiciária gratuita, deve ser mantida a decisão agravada que indeferiu o benefício. À luz de tais considerações, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo incólume a r. decisão agravada.
Basta uma breve leitura do inteiro teor da decisão acima, para perceber que as particularidades e nuances trazidas pela vítima foram demasiadamente ignoradas.
Em contraponto, em um caso análogo, foi proferida decisão pelo Relator Desembargador Carlos Levenhagen no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 10000210815338001 perante a 5ª Câmara Cível do TJMG, na qual houve a concessão do benefício da gratuidade da justiça pleiteado, na qual destacou que:
(…) ainda que considerável o acervo patrimonial adquirido na constância do casamento, precedida de possível união estável constituída pelos litigantes, extrai-se da petição inicial (ordem 21) e das razões recursais (ordem 01) estar o agravado, exclusivamente, na posse e na administração dos bens, ainda não partilhados, possuindo a agravante, por enquanto, mera expectativa do direito à meação, para o fim de ostentar a titularidade de 50% (cinquenta) do domínio do aludido patrimônio comum, ‘data venia’.
É importante esclarecer que não pretende-se abordar neste artigo os critérios balizadores para conceção do referido benefício, mas sim as consequências advindas do seu indeferimento perante os casos em que se faz inconteste a existência da violência patrimonial, muitas vezes seguida da existência de uma medida protetiva concedida no âmbito penal.
Ocorre que, a estrita aplicação da lei, muitas vezes desconsidera as nuances sociais e humanas que permeiam o exercício da justiça, criando um ambiente jurídico inflexível, incapaz de lidar adequadamente com situações complexas, como a violência patrimonial. A rigidez na interpretação da lei pode resultar na imposição de barreiras financeiras que dificultam o acesso à justiça, contrariando os princípios fundamentais de proteção dos direitos individuais.
O acesso à Justiça, direito fundamental básico, é mais amplo que o acesso à gratuidade, no entanto os custos dos processos são um obstáculo ao acesso.
Nesse sentido leciona Humberto Theodor Jr., vejamos:
Como regra geral, a parte tem o ônus de custear as despesas das atividades processuais, antecipando-lhe o respectivo pagamento, à medida que o processo realiza sua marcha. Exigir, porém, esse ônus como pressuposto indeclinável de acesso ao processo seria privar os economicamente fracos da tutela jurisdicional do Estado.
Daí garantir a Constituição a assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei, assistência essa que também é conhecida como Justiça gratuita.
A criação de barreiras econômicas desfavorece aqueles que já enfrentam uma situação vulnerável, desequilibrando ainda mais a balança da justiça. Isso contradiz a essência do sistema jurídico, que deve assegurar a todos o acesso equitativo à justiça.
Ao impor restrições financeiras, o judiciário pode inadvertidamente comprometer o direito de ação da vítima de violência patrimonial, facilitando a conduta do agressor na dilapidação dos bens ou até mesmo na sua ocultação e depreciação.
Faz-se imperativo que o poder judiciário reconheça a necessidade de um amparo adequado às vítimas de violência patrimonial que não se limita apenas à aplicação da lei, mas deve estender-se à compreensão das circunstâncias individuais e à promoção de medidas que assegurem a efetiva reparação dos danos sofridos.
Assim, destaca-se a importância de o judiciário evitar a imposição de uma barreira financeira que limite o direito de ação da vítima de violência patrimonial. É crucial que a vítima seja devidamente amparada, pois do contrário, o judiciário poderia ser conivente com essa forma de violência.
Referências
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BRASIL. Código penal brasileiro. Disponível em: link. Acesso em: 12 Dez 2023;
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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
DIDIERJR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência doméstica e familiar contra a mulher). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
FERNANDES, Valéria Dias Sacarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetividade: abordagem jurídica e multidisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
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TJ-MG – AC: 10000211206180001 MG, Relator: Fábio Torres de Sousa (JD Convocado), Data de Julgamento: 22/10/2021, Câmaras Cíveis / 8ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 26/10/2021;
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