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A força (da violência) do direito e a população trans

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Os casos de violência contra mulheres trans e a negligência jurídico-estatal para com a efetivação de políticas públicas que lhes garantam um efetivo e completo acesso à saúde, educação e trabalho, são recorrentes e desafiam as estruturas de poder que pretendem conferir segurança jurídica, social, cultural e de existência àqueles corpos que se encontram em situação de vulnerabilidade e que destoam do binarismo cisheterocentrado; e, entre estes dispositivos de poder, encontra-se o controle estatal sobre a autodeterminação dos corpos e identidades, em especial no que tange à autorreferenciação do nome e gênero.

Com relação a este particular, há salientar que, no contexto nacional, a Constituição da República Federativa do Brasil, que foi promulgada em 1.988 e que também é conhecida como Constituição Cidadã por aqueles que a têm como uma resposta às atrocidades cometidas durante o período ditatorial brasileiro, que durou de 01 de abril de 1.964 até 15 de março de 1.985, em seu preâmbulo, dispõe que, a Assembleia Nacional Constituinte se reuniu para a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

Ao final do texto preambular, que não possui eficácia normativa, mas, inegavelmente, norteia a hermenêutica que será conferida ao seu texto, a Constituinte promulga, a atual Constituição, sob a proteção de Deus, o que já torna expresso que é com base nas premissas divinas que o seu texto será lido, interpretado e valorado pelos operadores do Direito e pelos representantes dos Poderes Executivo e Legislativo.

É sob tal fundamento que se pode afirmar que o disposto, a título exemplificativo, no artigo 1º, incisos II, III e IV, da CRFB/88, no qual se elencam o valor social do trabalho e da livre iniciativa, juntamente com a cidadania e o princípio da dignidade humana, como fundamentos do Estado Democrático de Direito que constitui a República Federativa do Brasil, não foi pensado para ser aplicado à população de pessoas trans. O mesmo se pode afirmar quanto ao contido em seu artigo 3º, incisos III e IV, no qual a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, são elencados como objetivos da República Federativa do Brasil.

Isso se deve ao fato de que, a partir do ato fundante que promulgou a nossa Constituição Federal sob a proteção divina, com a chancela dos poderes que permeavam a sociedade em 1.985, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi reunida e instituída, o sistema sexo-gênero binário-patriarcal-colonial-cisheteronormativista fixou suas raízes e ditou as regras sob às quais a população nacional passaria a ser regida, tudo sob influência do poder performativo da linguagem que persiste, neste caso, pelo seu caráter colonizante. Aqueles que não se enquadrassem às normas ditadas na CRFB/88, e ao poder que se materializa em corpos dissidentes da matriz cisheteronormativa, estariam, aqui a título de hipótese, à mercê de serem extirpados do seio social.

Como efeito disso, muito mais do qualquer outro integrante do universo LGBTI, as pessoas trans são, indiscutivelmente, as que mais sofrem com o preconceito e com o estigma social. O preconceito decorre do fato de serem sujeitos e sujeitas com corpos que destoam daqueles que circulam nos espaços públicos e privados, uma vez que, sob o prisma da colonialidade de gênero, aquilo que não se enquadra ao sistema binário-patriarcal-cisheteronormativo compulsório e naturalizado, deve ser extirpado, excluído, desnaturalizado, combatido e renegado ao desprezo e à morte civil e física.

Tal renegação fomentada pelo estigma criado em torno das pessoas trans, tem mostrado relevantes e aviltantes resultados. Vivemos inseridos em uma das sociedades que mais mata travestis e transexuais no mundo, o que permite afirmar que são renegados, a tais pessoas, direitos e garantias individuais e sociais que se encontram previstas no atual texto constitucional. 1

Por meio do trabalho de entidades da sociedade civil, tanto internacional, a exemplo da Transgender Europe (TGEU),2 quanto nacionalmente, como a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA),3 etc.,4 cada vez mais esforços têm sido empenhados no mapeamento e combate de agressões e assassinato de pessoas transexuais.

Quanto ao mapeamento da violência cometida contra as pessoas trans, no Brasil, e suas fontes primárias, ou seja, aquelas provenientes de órgãos ou entidades estatais, há salientar que “é assustador pensar que 98,8% dos registros (do SINAN) não possuem a informação sobre a identidade de gênero das pessoas. E que, no caso do disque 100, este sequer traz referência sobre as denúncias em relação as pessoas trans”.5

Este silenciamento estatal, a meu ver, é eloquente. Afinal, encontramo-nos inseridos em uma sociedade colonializada e colonizante, que possui, como base, uma matriz estruturante fundada em um conceito binário, heterossexual, cisgênero, eurocentrado, de cunho normativo, para condicionar, definir e regular o indivíduo enquanto seu membro, ao passo em que, aqueles corpos que refugem à esta regra, por ele, não parecem estar abarcados.

Referido privilégio materializa sua estrutura, complexidade e naturalização, por exemplo, na violência, já citada, que é cometida contra a população de pessoas trans. Neste sentido, no início do ano de 2022, a ANTRA, sob a organização, coordenação, pesquisa e análise de Bruna G. Benevides, publicou o “Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil em 2021”,6 em que expõe que, no referido ano, tivemos, pelo menos, 140 (cento de quarenta) assassinatos de pessoas trans, sendo 135 (cento e trinta e cinco) travestis e mulheres transexuais, e 05 (cinco) casos de homens trans e pessoas transmaculinas. Assim o sendo, o ano de 2021 revelou um aumento de 141% de assassinatos contra pessoas trans, em relação a 2008; – o ano que a ONG Transgender Europe (TGEU) inicia o monitoramento global e que apresentou o número mais baixo de casos relatados, saindo de 58 assassinatos, em 2008, para 140, em 2021.

Para além de dados estatísticos relativos às mortes por Estado e região e em um cenário internacional, o mapa dos assassinatos cometidos em 2021 aponta ainda que, 5% das vítimas, tinha entre 13 e 17 anos e que, 53% das vítimas, tinha entre 18 e 29 anos. A idade média das vítimas foi de 29,3 anos.7

Em 2018, por exemplo, das 163 pessoas trans assassinadas, 60% eram jovens entre 17 e 29 anos, 72% não possuíam ensino médio completo, 65% dos assassinatos foram cometidos contra profissionais do sexo, 82% das mortes foram de pessoas trans identificadas como negras ou pardas, e, 97,5%, deram-se contra pessoas trans do gênero feminino.8

O problema, parece-me, é multifacetado, interseccionalizado. Trata-se de questão que envolve a fetichização do gênero feminino, a discriminação a negros/negras e pardos/pardas, a dificuldade de acesso a empregos formais sem qualificação básica, entre outros, de forma que a redução dos índices de violência contra pessoas trans necessariamente exige o enfrentamento concreto sob várias perspectivas, com a intenção de efetivamente inserir travestis e transexuais na rotina social, o que, admite-se, não é tarefa fácil em tempos de ascensão de discursos ultraconservadores no debate político nacional e internacional.

 

Referências

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1. Mais informações, encontram-se disponíveis em: bit.ly/3BSsMuK. Acesso em 18 mai. 2023.

2. Mais informações, encontram-se disponíveis em: bit.ly/3Mu0ZG2. Acesso em: 25 ago. 2022.

3. Mais informações, encontram-se disponíveis em: https://antrabrasil.org. Acesso em 18 mai. 2023.

4. A quantificação do número de assassinatos e de crimes de ódio, praticados contra pessoas trans, no contexto nacional, é expressa, em especial, por diversas organizações da sociedade civil, a partir de relatórios emitidos pela ANTRA, tendo em vista que inexiste, atualmente, relatório publicado, por meios oficiais, acerca de tais ocorrências. A título de exemplo, salientam-se publicações feitas pelo Observatório Legislativo da Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro (OLERJ), disponível em: bit.ly/3OA27uv, acesso em: 18 mai. 2023; e da Agência Brasil, disponível em: bit.ly/3BSsMuK, acesso em 18 mai. 2023.

5. Disponível em: bit.ly/3orqNKR. Acesso em: 18 mai. 2023.

6. Disponível em: bit.ly/3orqNKR. Acesso em: 18 mai. 2023.

7. Disponível em: bit.ly/3orqNKR. Acesso em: 18 mai. 2023.

8. Informações disponíveis em: bit.ly/3IY9QPt. Acesso em: 18 mai. 2023.

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