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A homologação judicial de acordos de colaboração premiada

direito penal

O julgado selecionado para o estudo deste mês aborda aspectos relevantes sobre a colaboração premiada sob a regulamentação da Lei n. 12.850/2013, também conhecida como lei das organizações criminosas (LOrcrim). O estudo se concentrará especialmente na fase de homologação judicial do termo do acordo, momento em que o juízo competente averiguará a regularidade, a legalidade e a voluntariedade desse negócio jurídico processual.

 

No AgRg no REsp 1.943.100/SC, julgado em novembro de 2023, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Corte, por unanimidade, negou agravo interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina  (MPSC) contra decisão que negou provimento a recurso especial. Irresignado contra sucessivos indeferimentos de homologação de acordo de colaboração premiada, o MPSC chegou ao STJ, sustentando a legalidade do ajuste, com foco no leque de sanções premiais assentado pelas partes durante as tratativas.

Os termos do acordo de colaboração foram estipulados entre o acusado (devidamente assistido por advogado portador de poderes especiais) e o órgão acusador. Em uma das cláusulas subscritas constava o compromisso de limitar temporalmente a pena, prefixar a forma de cumprimento dessa reprimenda e suspender ações penais e investigações em curso, à míngua de informações sobre finalidade, prazo ou condições para essa suspensão, bem como a desistência de interposição de recursos, a infringir o princípio da reserva jurisdicional, da separação dos poderes e da legalidade.

Por incorporar compromissos que extrapolavam os limites legais prefixados, por atingir esfera interventiva própria do Judiciário, o juízo a quo competente1 negou a homologação do ajuste, com fundamento no art. 4, §7º, da LOrcrim. A decisão denegatória da homologação foi confirmada em grau de recurso pelo Tribunal local ad quem por fundamento similar.

Pois bem. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos, nos termos do art. 3º-A, da LOrcrim. O instituto também é previsto em tantos outros diplomas legais, como o art. 41, da Lei n. 11.343/06 (lei de drogas), art. 159, §4º, do Código Penal (CP) (extorsão mediante sequestro), art. 1º, §5º, da Lei n. 9.613/98 (“lavagem de dinheiro”) art. 25, §2º, da Lei n. 7.492/86 (crimes financeiros), art. 14 da Lei n. 9.807/99 (proteção a vítimas e testemunhas), dentre outros.

No Manual Colaboração Premiada, publicada pelo Ministério Público Federal, a colaboração premiada é definida como:

A colaboração premiada é meio de obtenção de prova sustentada na cooperação de pessoa suspeita de envolvimento nos fatos investigados, buscando levar ao conhecimento das autoridades responsáveis pela investigação informações sobre organização criminosa ou atividades delituosas, sendo que essa atitude visa à amenizar da punição, em vista da relevância e eficácia das informações voluntariamente prestadas (MPF, 2014).

Segundo Marcos Paulo Dutra Santos, a colaboração premiada:

[…] consubstancia espécie de confissão complexa, pois, além de admitir a responsabilidade penal pelo injusto, o acusado fornece informações que podem desembocar, v.g., na identificação dos demais coautores e partícipes e das infrações penais conexas, na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas do grupo criminoso, na prevenção de infrações penais correlatas ao injusto do qual é acusado, na recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações penais que lhe são imputadas, ou na localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada (Santos, 2017, p. 97-98).

Para uma importante introdução ao estudo crítico do tema, sugere-se a leitura do ensaio “Delação premiada: limites éticos ao Estado”, de Víctor Gabriel Rodríguez, que, de início, dispara que “reprovar simplesmente os valores da delação seria algo tão irrealista quanto inócuo” (Rodriguez, 2018, p. 21). O acordo de colaboração premiada é uma realidade e um importante instrumento regulamentado pela legislação vigente, a qual vem sendo interpretada e reinterpretada pelos tribunais superiores com o objetivo de aperfeiçoamento de sua operacionalização, ao tempo em que se preservam direitos e garantias fundamentais do cidadão. Admite-se que a colaboração premiada é sobremodo de grande valia no enfrentamento a crimes praticados por organizações criminosas.

No leading case  HC 127.483/PR, de relatoria do Min. Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 20152 , ao se debruçar sobre um acordo de colaboração premiada, sedimentou-lhe a natureza juridica de negocio juridico processual, já que seu “objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração” (STF, 2016).

No citado HC, o STF, didaticamente, expôs, sob a lição de Antônio Junqueira de Azevedo,  que o acordo de colaboração premiada, por se tratar de um negócio jurídico processual, é examinado em três planos, a saber, existência (análise de seus elementos constitutivos), validade (observância aos requisitos legais) e eficácia (análise de seus fatores) (STF, 2016).

Como aponta Capez (2016), para o STF, diante do HC 127.483/PR, os elementos condicionantes da existência do acordo de colaboração premiada (que deve ser escrito, obrigatoriamente) encontram-se no art. 6º, da LOrcrim, quais sejam, i) o relato da colaboração e seus possíveis resultados; ii) as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; iii) a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; e iv) as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor. No que diz respeito ao requisito de “especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família”, previsto no inciso V daquele dispositivo, ainda segundo Capez, a Suprema Corte entendeu que ele “constitui um elemento particular eventual, uma vez que o acordo somente disporá sobre tais medidas ‘quando necessário’” (Capez, 2016).

Já no plano da validade, o STF gizou, à vista do art. 4º, caput e seu §7º, da LOrcrim, que o  acordo de colaboração somente será válido se reunir a voluntariedade do agente, a regularidade e a sua legalidade (STF, 2016).

Quanto ao plano da eficácia, a Suprema Corte  foi taxativa: o acordo existente e válido somente será eficaz se for submetido à homologação judicial (art. 4º, § 7º, da Lei n. 12.850/13) (STF, 2016), atualmente com a seguinte redação em seu caput: “Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor […]” (Brasil, 2013).

O ponto central de debate no AgRg no REsp 1.943.100/SC, inicialmente apresentado como âncora para nosso estudo, cinge-se à análise tanto do plano da eficácia, quanto da validade do acordo de colaboração premiada submetido à apreciação judicial. O ajuste consubstanciou vícios que o invalidaram por infringir os limites estritamente legais, ao estabelecer limitação temporal da pena, a imposição da forma de cumprimento dessa reprimenda, a suspensão de  ações penais e investigações em curso, sem informações sobre finalidade, prazo ou condições para essa suspensão, e a obrigatoriedade de desistência de interposição de recursos. Essas cláusulas subtraem do Poder Judiciário seu poder-dever de intervenção como meio de exercício do controle de legalidade, a ele atribuído pela via constitucional, fere o princípio da separação dos Poderes, bem como rompe a legalidade em si mesma, por escapar das fronteiras de consensualidade de lege lata temas sensíveis que envolvem aplicabilidade sancionatória, processo e execução penal.

Com todo efeito, o juiz intervém, inicialmente, na homologação da proposta de colaboração (art. 4º, §7º, da LOrcrim), ocasião em que deverá ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, e, finalmente, no momento de aplicação dos benefícios legais (art. 4º, §7º-A). Em nenhuma hipótese o juiz intervém durante as negociações (art. 4º, §6º) e a homologação do acordo não gera, por si, direito subjetivo às partes. O juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, devolvendo-a às partes para as adequações necessárias (art. 4º, §8º). O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto (art. 7º, caput).

Ademais, contra a decisão que nega a homologação do acordo, é cabível recurso de apelação (art. 593, inciso II, do CPP)3 , sendo nulas de pleno direito as previsões de renúncia ao direito de impugnar a decisão homologatória (art. 4º, §7º-B, LOrcrim).

Segundo o MPF (2014), é possível a oferta ao colaborador de outras espécies de vantagens, além das constantes do caput do art. 4º, da LOrcrim (ou seja, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal), conquanto não infrinjam a  Constituição, a lei, os princípios gerais de Direito e desde que não atentem contra a moral, os bons costumes e a ordem pública.

Capez (2016) ainda lembra que “O Supremo Tribunal Federal tem entendido que, por se tratar de um meio de obtenção de prova (art. 3º, I, da Lei n. 12.850/13), quando houver notícia, no acordo de colaboração, de crimes praticados por titular de prerrogativa de foro, a sua homologação caberá ao tribunal competente para a respectiva ação penal, sob pena de usurpação de competência”.

Entretanto, o STJ já teve a oportunidade de assentar no RHC 80.888/PR (STJ, 2017), que, para fins de homologação do acordo de colaboração premiada, a mera menção por colaborador à autoridade possuidora de foro por prerrogativa de função não tem o condão de firmar a competência do órgão hierarquicamente superior quando se refira a fatos distintos daqueles objeto de investigação, de forma que, quem não tem foro por prerrogativa de função não é beneficiado pelo deslocamento da competência, ainda mais se os fatos forem diversos.

Portanto, a homologação judicial do acordo de colaboração premiada apresenta-se como garantia de presença da legalidade, da regularidade e da voluntariedade em todo seu processo de formalização, como mecanismo de preservação dos direitos do colaborador e de quem é apontado na delação como autor de infrações penais. Por essa razão, a intervenção judicial apta a averiguar esses aspectos do acordo é tão cara, cabendo ao juiz acuidade e assertividade durante a análise.

 

Notas

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1. Lembrando que, caso o acordo for formalizado durante a fase de investigação, competirá ao juízo de garantias esse proceder, nos termos do art. 3º-B, inciso XVII, do Código de Processo Penal – CPP.

2. Outro julgado importante da Suprema Corte a ser lembrado refere-se à Questão de Ordem na Petição 7.074/DF, de relatoria do Min. Edson Fachin (STF, 2018).

3.  Vide: REsp 1834215/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe 12/11/2020.

Referências

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BRASIL. Lei nº 13.850, de 2/8/2013. Brasília, 2013. Disponível em: site. Acesso em: 16 jan. 2024.

CAPEZ. Rodrigo. O acordo de colaboração premiada na visão do Supremo Tribunal Federal. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 17, n. 44, p. 117-130, Julho-Setembro/2016. Disponível em: site.  Acesso em: 16 jan. 2024.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Manual Colaboração Premiada. 2014. Disponível em: site. Acesso em 16 jan. 2024.

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Delação premiada: limites éticos ao Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) Premiada. 2 ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). AgRg no REsp n. 1.943.100/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 27/11/2023, DJe de 29/11/2023. Disponível em: site. Acesso em 16 jan. 2024.

______. REsp 1834215/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe 12/11/2020. Disponível em: site. Acesso em 16 jan. 2024.

______. RHC n. 80.888/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 21/6/2017. Disponível em: site. Acesso em 16 jan. 2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). HC 127.483/PR, relator Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, Processo Eletrônico DJe-021, divulgação 03/02/2016, publicação 04/02/2016. Disponível em: site. Acesso em: 16 jan. 2024.

_______. QO na Petição 7.074/DF. relator Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017, DJe-085, divulgação 02/05/2018, publicação 03/05/2018. Disponível em: site. Acesso em: 16 jan. 2024.

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