O estudo do mês abordará, brevemente, um tema bastante caro à teoria geral das provas no processo penal: a vedação ao emprego de provas ilícitas pelas agências de persecução penal. Veremos como a prática contrasta com o princípio do devido processo legal e como o sistema processual reage para reconformar o processo penal aos eixos democráticos.
O acórdão que ilustra o estudo foi publicado no Informativo de jurisprudência de n. 784, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja ementa segue em transcrição, com destaques a posteriori:
PENAL. PROCESSO PENAL. LAVAGEM DE DINHEIRO (ART. 1º, § 2º, I, DA LEI N. 9.613/1998). RELATÓRIO DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA DO COAF. SITUAÇÃO DIVERSA DA DECIDIDA NO RE N. 1.055.941/SP. RELATÓRIOS SOLICITADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL DIRETAMENTE AO COAF SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO.
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O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, em âmbito de repercussão geral, fixou as seguintes teses, a saber: “1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil – em que se define o lançamento do tributo – com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB referido no item anterior deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.”
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Constata-se que foi julgado lícito o compartilhamento de provas entre o UIF (antigo COAF) e a Receita Federal do Brasil (RFB) com os órgãos de persecução penal, nos casos em que o UIF e a RFB constatam a ocorrência de ilegalidades e comunicam os fatos aos órgãos de persecução penal.
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No presente caso, a autoridade policial solicitou diretamente ao COAF o envio dos relatórios de inteligência financeira, sem a existência de autorização judicial, situação, portanto, diversa da análise pelo STF.
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A Terceira Seção desta Corte Superior analisou situação similar, ao julgar o RHC n. 83.233/SP, no qual o Ministério Público requisitou diretamente à Receita Federal do Brasil o envio da declaração de imposto de renda de determinadas pessoas, o que foi considerado ilícito por esta Corte Superior.
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Dessa forma, o presente recurso em habeas corpus deve ser provido para declarar a ilicitude dos relatórios de inteligência financeira solicitados diretamente pela autoridade policial ao COAF.
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Recurso em habeas corpus provido. (RHC n. 147.707/PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 24/8/2023.)
Pois bem. Não examinaremos com detalhamento os argumentos levantados pelas partes, nem os fundamentos apresentados por cada um dos ministros julgadores da Sexta Turma do STJ, tampouco valorações sobre eventual acerto ou desacerto da conclusão final da Corte. Apenas focalizaremos em alguns pontos suscitados, correlacionados com a decisão de provimento do recurso defensivo. Trata-se de uma oportunidade para uma rápida revisão sobre os apontamentos doutrinários pertinentes a eles.
No caso concreto, uma grande empresa estava sob a mira do Ministério Público Estadual (MPE), o qual alimentava a suspeita de crime de “lavagem de capitais” (art. 1º, §2º, inciso I, da Lei n. 9.613/98) por parte dessa sociedade. O membro do MPE requisitou à autoridade policial a instauração de inquérito policial para a apuração da prática delitiva.
A autoridade policial, a seu turno, ao invés de representar à autoridade judicial pela quebra do sigilo de dados de movimentações financeiras da empresa suspeita, nos termos do art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal, c/c art. 1º, §4º, inciso XVIII, da Lei Complementar Federal n. 105/2001, requisitou diretamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), hoje Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o envio de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF). Tais RIF evidenciaram indícios de materialidade delitiva, que “apontavam a existência de movimentações financeiras incompatíveis com o patrimônio, a atividade econômica e a capacidade financeira de pessoas que guardavam relação com a empresa” (STJ, 2023).
Segundo a defesa, a autoridade policial requisitou esses documentos de forma genérica, apenas informando o nome da pessoa jurídica, o número do inquérito instaurado e menção ao possível cometimento do crime de sonegação fiscal, sem a observância dos requisitos legais (STJ, 2023).
Assinala-se que cabe à atual UIF, como consta de seu site, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividade ilícita e comunicar às autoridades competentes para instauração de procedimentos (Ministério da Fazenda, 2023). Também consta, na mesma página oficial (grifo em negrito no original), que: “o conteúdo do RIF é protegido por sigilo constitucional, inclusive nos termos da Lei Complementar 105, de 2001, não estando, portanto, sujeito às classificações da Lei 12.527, de 2011 [Lei de Acesso à Informação]. O órgão destinatário do RIF é responsável pela preservação do sigilo” (Ministério da Fazenda, 2023).
Continuando, a COAF/UIF atendeu àquela requisição e enviou os RIF à autoridade policial, que, em seguida, representou ao juízo competente pela concessão de busca e apreensão, valendo-se desses documentos como indícios de prática delitiva. O juiz reconheceu a licitude dos RIF e deferiu a citada medida cautelar.
A defesa, irresignada, impetrou habeas corpus (HC) junto ao Tribunal de Justiça Estadual, no intuito de extirpar dos autos do inquérito policial a referida prova documental qualificada por ela como ilícita e, consequentemente, a devolução de bens apreendidos e o encerramento da investigação (“trancamento do inquérito policial”). Insistiu a defesa na configuração de constrangimento ilegal face à violação à cláusula de reserva de jurisdição insculpida na Carta Magna, ao ter a autoridade policial requisitado diretamente ao COAF/UIF os RIF, escapulindo do controle jurisdicional prévio a produção probatória, que foi suficiente para o desdobramento das demais manobras persecutórias.
Por sua vez, a Corte local denegou a ordem, sob o argumento central de que o compartilhamento de dados com órgãos de persecução penal prescindem de autorização judicial prévia (sem prejuízo do controle jurisdicional posterior), em alegado alinhamento ao entendimento fixado no Recurso Extraordinário 1.055.941/SP, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em âmbito de repercussão geral. A denegação da ordem mobilizou a defesa a recorrer ao STJ, perante o qual reiterou seus argumentos e pedidos.
A Sexta Turma do STJ, por sua vez, entendeu que o caso analisado diverge da decidida pelo STF no RE 1.055.941/SP, uma vez que, lá, foi fixada a tese de que “É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil – em que se define o lançamento do tributo – com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional” (STF, 2019), muito semelhante ao que ocorre entre instituições financeiras e a Receita, sem que haja uma prospecção de dados que remetam à violação de privacidade.
Nesse ponto, após breve apresentação do painel fático que deu sustentação ao acórdão ora apreciado da Sexta Turma do STJ, serão comentados muito rapidamente os aspectos doutrinários que circundam o tema correspondente à prova no processo penal.
A primeira pergunta que se sobressalta é: o que é prova no processo penal? A terminologia “prova” é empregada vulgarmente para se referir a tudo aquilo capaz de demonstrar um fato objeto de argumentação favorável ou desfavorável aos interesses em disputa, a depender do ângulo de observação.
No processo penal, a expressão não se distancia muito dessa ideia popular. No entanto, algumas nuances polissêmicas repousam sobre ela a depender do enfoque dado. De início, a rigor, a doutrina diferencia prova, meio de prova, meio de obtenção de prova e fonte de prova. Estudando os termos de trás para frente, é facilitada a compreensão do todo.
Fonte de prova, para Távora e Alencar, é a pessoa ou coisa da qual emana a prova. Pessoa e coisa, segundo os autores, subsumem à referência comum “sujeito da prova”, em um sentido amplo. Dessa forma, há fontes de prova reais (cadáver, documentos) ou pessoais (perito, testemunha, vítima) (Távora; Alencar, 2022, p. 681). É literalmente a origem substantiva de onde se extrairá o que se pretende provar.
Para Badaró, meio de obtenção de prova (também chamado de meio de investigação ou de pesquisa de provas), por sua vez, opera como instrumento para a colheita de fontes ou elementos de prova (Badaró, 2022, p. 443). Conforme esse autor, além da busca e apreensão, há outros meios de obtenção de prova, como a interceptação das comunicações telefônicas e telemáticas (Lei n. 9.296/1996), a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (art. 8-A, Lei n. 9.296/1996), as chamadas “quebras” dos sigilos legalmente protegidos, a exemplo do sigilo financeiro (Lei Complementar Federal n. 101/2001) e o fiscal (especificamente, no art. 198, do Código Tributário Nacional), o “agente infiltrado (Lei 12.850/2013 e, em especial, arts. 190-A a 190-E, da Lei n. 8.069/90), dentre outros (Badaró, 2022, p. 443). Através de uma busca e apreensão, por exemplo, podem ser localizados documentos ou objetos (fontes de prova) que respaldam a prova sob a pretensão de veracidade.
Já para Choukr, meio de prova “é o mecanismo empregado para a obtenção de um conteúdo, este sim a prova em si. Desta forma a testemunha não é ́prova ́ mas seu depoimento sim; a interceptação não é prova, mas o conteúdo da degravação etc.” (Choukr, 2005, p. 285). É o expediente típico (regulamentado por lei) ou atípico (não regulamentado) que pode ser empregado para extrair, a partir das interações, o produto cognitivo predicado pela alegação e assimilável pelo juiz. O exame pericial, por exemplo, é um meio de prova regulamentado no Código de Processo Penal (CPP) realizado via de regra para demonstrar a materialidade de um crime não transeunte (aquele que deixa vestígios). Em outras palavras, a prova da materialidade delitiva é demonstrada através da perícia, instrumento processual disponível para a produção da prova sob o crivo do contraditório (Távora; Alencar, 2022, p. 680).
Por fim, prova, ainda segundo Choukr, “é todo produto obtido por um meio lícito, em contraditório, pelas partes legitimadas, perante o juiz natural da causa, tendente a certificar o conteúdo da imputação e o objeto do processo ou a descaracterizá-lo, devendo ser sopesado explicitamente pelo órgão julgador na fundamentação de seu provimento” (Choukr, 2005, p. 284). Por outro lado, enquanto não submetidos ao contraditório, a rigor, documentos e recursos semelhantes são considerados elementos de informação.
Távora e Alencar propõem que a prova tem uma dimensão estática (a prova em si mesma), outra dinâmica, através da produção probatória, e uma dialética, correspondente à submissão da prova à discussão processual e posterior valoração na sentença (Távora; Alencar, 2022, p. 679).
À vista da descrição fática abreviada acima feita inicialmente, os RIF, que são documentos (art. 232, CPP), são considerados como fontes de prova. O conjunto das informações neles inseridas para posterior valoração judicial configura meio de prova. Já a medida de busca e apreensão determinada em amparo por eles como meio de obtenção de prova.
E o que se entende por prova ilícita? Por que é tão grave a produção de prova com violação da lei, a ponto de invalidá-la?
Prova ilícita, assim como prova ilegítima, é espécie do gênero “prova proibida”, vedada por fundamento constitucional sob a forma de garantia fundamental (art. 5º, inciso LVI, CF/88). A proibição de manejo de provas obtidas por meios ilícitos reforça o compromisso do Estado de sujeitar-se ao império da lei e de adequar-se inteiramente ao projeto de consolidação democrática firmado pela sociedade brasileira à época da promulgação da Constituição vigente. O poder constituinte originário sinaliza, através da referida vedação, que o processo penal não é uma arena esportiva rudimentar e grosseira, em que tudo vale e tudo pode, em detrimento da liberdade dos cidadãos, ainda que orientado por razões nobres, como o combate à corrupção. Há limites axiológicos claramente estabelecidos na Carta Magna que enaltecem o dever-poder do Estado Democrático de Direito de penalizar dentro de rígidos parâmetros éticos, em equilíbrio com os direitos e garantias fundamentais da pessoa investigada ou acusada.
A doutrina comumente diferencia prova ilícita de prova ilegítima. A primeira, viola regras de direito material ou princípios constitucionais (CPP, art. 157). A segunda, a seu turno, viola regras processuais e princípios constitucionais de caráter também processual.
No caso analisado, os RIF adquiridos pela autoridade policial à revelia de prévia autorização judicial são provas ilícitas (mais especificamente, referindo-se ao produto obtido através deles). A cláusula de reserva de jurisdição, imanente ao regime democrático, foi desrespeitada na visão da Sexta Turma do STJ e o vício decorrente, projetivo em relação à futura ação penal, tem o potencial de eivá-la irreversivelmente. É intuitivo concluir que a permanência dessa prova ilícita, com o desenvolvimento de uma investigação que possivelmente se desdobrará em um processo-crime, implica em manifesto prejuízo ao patrimônio jurídico da pessoa investigada, tutelado sob as raias constitucionais. O conteúdo dos RIF – a prova obtida – está protegido pelo sigilo constitucional, sujeito, portanto, para sua clivagem, à autorização judicial no âmbito do controle prévio da legalidade do ato.
O efeito elementar que incide diretamente sobre o processo, na prática, diante de uma prova declarada como ilícita, é a determinação de seu desentranhamento dos autos em atenção ao mandamento constitucional de sua inadmissibilidade, de forma a remover qualquer possibilidade de evocação dessa prova durante a atividade cognitiva do julgador.
Diversas teorias – como a teoria da fonte independente, da descoberta inevitável, da boa-fé, dentre outras – são suscitadas em busca de soluções aptas a restabelecer o equilíbrio buscado entre os interesses persecutórios estatais e os interesses de preservação de liberdade da pessoa acusada, com o menor dano possível a ambos os lados. É uma zona fronteiriça que merece aguda atenção, uma vez que uma prova ilícita, uma vez produzida, inviabiliza o processo, e arrasta consigo todas as demais provas dela derivadas, contaminando-as e exigindo-se o descarte de todo esse material probatório produzido. Essa regra pautada na primeira parte do art. 157, §1º, do CPP, configura o teor da conhecida teoria dos frutos da árvore envenenada (ou teoria da ilicitude por derivação), relativizada pelas teorias acima citadas. Tais teorias relativizantes, em razão da brevidade do espaço, não serão abordadas nesta oportunidade, podendo ser futuramente apreciadas com mais vagar, com o subsídio de ilustrações radicadas da jurisprudência nacional para sua melhor compreensão.
Por último, resta uma questão: Há, tecnicamente falando, nulidades em inquérito policial ou em procedimentos investigativos preliminares de modo geral?
Estritamente, não é adequado falar em nulidade (considerada aqui como defeito sujeito à sanção de invalidação probatória e como a própria sanção) de atos praticados no decorrer da investigação, mas em vícios de legalidade que têm o potencial de reverberar a posteriori na ação penal, a extravasar o âmbito administrativo imanente ao procedimento investigativo. Badaró adverte que, apesar de ser corriqueira a afirmação de que os vícios do inquérito não acarretam a nulidade da ação penal, essa referência deve ser considerada com reservas, uma vez que, “nos meios de produção de prova produzidos no inquérito policial, que necessitam de ordem judicial e que tenham sido praticados de forma viciada, a sua nulidade se projetará na ação penal (…). Os elementos de informação colhidos em tais atos não poderão integrar o material probatório a ser valorado pelo juiz” (Badaró, 2022, p. 168).
Com tudo isso, sobrevoamos em revista, muito rapidamente, alguns pontos temáticos de contato com a teoria geral da prova penal.
Referências
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2022.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MINISTÉRIO DA FAZENDA. Inteligência Financeira. 2023. Disponível em: link. Acesso em: 1 set. 2023.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Recurso em Habeas Corpus n. 147.707/PA. Relator Min. Antonio Saldanha Palheiro. Sexta Turma. Brasília, DF, 15 de agosto de 2023, DJe. Brasília, 24 de agosto de 2023. Disponível em: link. Acesso em: 21 ago. 2023.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP. Relator: Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Brasília, DF, 04 de dezembro de 2019. Dje. Brasília, 06 dez. 2019. Disponível em: link. Acesso em: 8 set. 2023.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 17 ed. São Paulo: Ed. JusPodivm, 2022.