1. Introdução ao Autismo
O Transtorno do Espectro Autista (TEA), pode ser definido como “uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva.” (OPAS), sendo relevante reforçar que o TEA é conhecido por se manifestar em graus variados, desde leve até severo.
O TEA, conforme nos explica a doutrina acadêmica especializada, “não tem cura, mas tem tratamento” (GEREMIAS et al, 2017), a fim de melhor fundamentar o acima explanado, cita-se Fontana (2017):
O autismo, hoje denominado Transtorno do Espectro Autista – TEA, é um transtorno global do desenvolvimento, o qual atinge a saúde mental da pessoa portadora e que se caracteriza basicamente por alterações significativas na comunicação, sociabilidade e comportamento. As dificuldades enfrentadas pelas pessoas portadoras desta síndrome são inúmeras e iniciam-se nos primeiros anos de vida, sem possibilidades de cura. Os graus de acometimento podem variar de leve a severo, com variações consideráveis para cada indivíduo, sendo, outrossim, comum que haja muita dificuldade no desenvolvimento de habilidades sociais e comunicativas, ocorrendo com bastante frequência comportamentos repetitivos, estereotipias e obsessões.
Essa condição traz consigo a indispensável necessidade de atenção especializada e suporte constante para o melhor desenvolvimento pessoal e social das pessoas diagnosticadas com TEA.
No mais, “A Organização Mundial da Saúde, OMS, calcula que o autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo.” (ONU News, 2017), o que demonstra uma necessidade crescente de inclusão e debate acerca do tema, principalmente nos concursos públicos, dando maior oportunidade aos autistas.
2. Autistas como Pessoas com Deficiência (PCD)
No Brasil, felizmente a Lei nº 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
A mencionada Norma Federal é relevante porque tratou de reconhecer expressamente, não dando margens para interpretações restritivas, que o cidadão autista é classificado como pessoa com deficiência.
Tal Legislação é bastante importante, visto que permite aos inúmeros indivíduos com TEA que tenham acesso aos direitos assegurados aos PCDs, entre eles, o presente escrito defende que está incluso o de concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência nos concursos públicos, beneficiando todos os autistas, inclusives os de nível I.
Além de prever expressamente que os autistas são pessoas com deficiência, a Lei Berenice Piana também apoia a inserção de pessoas com TEA no mercado de trabalho. Natany Marques de Alvarenga (2017) destaca o seguinte a respeito da Lei Berenice Piana:
A lei Berenice Piana também garante e estimula a inserção da pessoa com TEA no mercado de trabalho, estando incluídas na Lei de Cotas, que segundo a Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do trabalho, há 9,3 milhos de pessoas com deficiência que se encaixam na Lei de Cotas, para 827 mil vagas abertas. É importante destacar que as pessoas autistas têm facilidade de concentração e em realizar atividades repetitivas, assim como facilidade em atividades ligadas à sua área de interesse, segundo os dados do Escritório de Estatísticas do Trabalho nos Estados Unidos, mas mesmo assim, segundo dados da ONU, estima-se que 80% dos adultos no espectro autista estão desempregados.
Por fim, não podemos deixar de mencionar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência nos explica em seu artigo 2º que “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, não restando dúvidas de que no texto normativo estão inclusos os autistas, inclusive os de nível I.
3. O Direito do Autista Nível I às Vagas PCD
Como é de conhecimento geral, “Pessoas autistas enfrentam discriminação e barreiras em todos os setores da sociedade – nos sistemas de saúde e de assistência social, na educação, no emprego e em vários outros.” (Ministério da Saúde, 2024).
A legislação pátria assegura direitos fundamentais para a pessoa com deficiência, incluindo a inclusão em políticas públicas e a reserva de vagas em concursos públicos. A jurisprudência recente do Tribunal de Justiça de São Paulo reforça o direito do autista de concorrer às vagas PCD:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Concurso público – Vagas reservadas às pessoas com deficiência – Pessoa autista tem direito à concorrer nas vagas destinadas às pessoas com deficiência – Inteligência da Lei nº 12.764/12 – Presença dos requisitos para concessão da tutela de urgência – Probabilidade do direito decorrente de laudo médico que indica ser a agravante pessoa autista – Risco ao resultado útil do processo decorre da possibilidade de nomeação de outras pessoas antes do agravante – Recurso provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2007981-12.2024.8.26.0000; Relator (a): Magalhães Coelho; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Foro de Barueri – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 19/02/2024; Data de Registro: 19/02/2024)
Essa decisão reafirma a interpretação de que autistas, mesmo em graus mais leves, são contemplados pelas políticas inclusivas como PCD, haja vista a disposição expressa da Lei nº 12.764/12.
E o precedente da Corte Bandeirante não é isolado, temos decisões de outros Tribunais, como em Brasília, no qual a Desembargadora Dra. Ana Maria Ferreira da Silva, neste ano, em maio, disse claramente que o grau do autismo é irrelevante, tendo o autista o direito de concorrer às vagas destinadas a PCD, vejamos:
A Lei federal n° 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, destaca em seu art. 1°, §2°, que: “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”. 2. Os elementos fáticos e probatórios contidos nos autos, notadamente os inúmeros relatórios médicos e o laudo de avaliação neuropsicológica elaborados por profissionais especializados, comprovam que a autora é portadora do Transtorno do Espectro Autista (TEA), que se trata de distúrbio abarcado entre aqueles especificados na legislação de regência e no edital do concurso como apto a comprovar a condição de pessoa com deficiência para fins de concorrência às vagas específicas. 3. A legislação não distingue as diferentes gradações ou formas de manifestação do Transtorno do Espectro Autista (TEA) para o enquadramento do indivíduo como pessoa com deficiência, não cabendo, portanto, à Administração Pública interpretar restritivamente os dispositivos legais e excluir do certame a candidata que preenche os requisitos para concorrer às vagas destinadas às pessoas com deficiência.
(TJDFT, Acórdão 1859895, 07050710720238070020, Relator(a): ANA MARIA FERREIRA DA SILVA, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 15/5/2024, publicado no PJe: 23/5/2024 – Grifei).
Logo, não há maiores dúvidas, o autistia, pouco importando o nível, tem o direito à inscrição nas vagas destinadas aos candidatos portadores de deficiência (PCD), não podendo a banca, por ato infralegal, restringir os direitos do autista nível I, sendo uma patente ilegalidade e que viola o princípio da igualdade exposto no artigo 5º da Carta Maior.
Insta esclarecer que o princípio da legalidade aplicado à Administração Pública é no sentido restrito, ou seja, “a atividade administrativa deve não apenas ser exercida sem contraste com a lei, mas, inclusive, só pode ser exercida nos termos de autorização contida no sistema legal” (BANDEIRA DE MELLO, 2012), em resumo: “o Poder Público só pode fazer o que a lei autoriza.” (PINHO, 2000), não podendo restringir a sua aplicação de maneira ilegal e discriminatória.
No mais, o autista de suporte 1, quando inserido no ambiente de trabalho, se dedica ao máximo, porque tudo que faz é com muito amor e dedicação. Principalmente os autistas que tem hiperfoco no meio em que se encontram.
Já os autistas de outro suporte, podem precisar de algum tipo de ajuda, mas também serão dedicados e trazem para o ambiente de trabalho o carinho ao próximo e ao trabalho.
A sociedade em si, precisa deixar o preconceito de lado e dar oportunidades aos autistas, não só no trabalho mas também em concursos. Fazendo assim a inclusão de todos.
Por fim, não custa reforçar que, nos termos do Art. 34 do Estatuto da Pessoa com Deficiência “A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Já o seu § 1º é taxativo em impor que “As pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos”, devendo não discriminar os autistas, pouco importando o nível.
4. Conclusão
Portanto, é evidente que o autista se enquadra perfeitamente nos conceitos de pessoa com deficiência, tendo o direito de concorrer às vagas PCD em concursos públicos, conforme assegurado pela Constituição Federal e pela Lei Berenice Piana.
Defende o presente escrito que a recusa ao direito de acesso a essas vagas configura uma prática visivelmente discriminatória, em desacordo com o princípio constitucional da igualdade de acesso e as normas de proteção à pessoa com deficiência.
Por fim, temos que a Administração que negar esse direito estará promovendo uma forma de exclusão e desrespeito à dignidade da pessoa com deficiência, “não cabendo, portanto, à Administração Pública interpretar restritivamente os dispositivos legais” (TJDFT, Acórdão 1859895).
Referências
____________________
ALVARENGA, Natany Marques de. Lei Berenice Piana e Inclusão dos Autistas no Brasil. Disponível em: link. Acesso em: 4 nov. 2024.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012
FONTANA, Andressa Tonetto. A necessária proteção da pessoa portadora de autismo e a promoção de sua autonomia frente ao estatuto da pessoa com deficiência. Revista IBDFAM, Belo Horizonte, n. 23, p. 85-97, 2017.
GEREMIAS, Ariel Oliveira; ABREU, Margarete Aparecida Broleze; ROMANO, Luis Henrique. Autismo e neurônio-espelho. Revista Saúde em Foco, v. 9, n. 1, p. 171-176, 2017.
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. Volume 17. São Paulo: Saraiva, 2000.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: link. Acesso em: 4 nov. 2024.
BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e altera o § 3o do art. 98 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Acórdão 1859895. Relatora: ANA MARIA FERREIRA DA SILVA. 07050710720238070020. Data de julgamento: 15 mai. 2024. Publicado em: 23 mai. 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Agravo de Instrumento 2007981-12.2024.8.26.0000. Relator: Magalhães Coelho. 7ª Câmara de Direito Público. Foro de Barueri – Vara da Fazenda Pública. Data do julgamento: 19 fev. 2024. Data de registro: 19 fev. 2024.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo. Disponível em: link. Acesso em: 04 nov. 2024.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. OMS afirma que autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo. Disponível em: link. Acesso em: 04 nov. 2024.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Transtorno do espectro autista. Disponível em: link. Acesso em: 04 nov. 2024.
Autores
____________________
João Vitor Rossi: Advogado especializado em Direito Tributário e Imobiliário, com registro na OAB-SP nº 425.279. Possui MBA Executivo em Direito, Negócios e Operações Imobiliárias, especialização em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil, que lhe proporciona uma visão ampla e estratégica para a resolução de problemas complexos e a liderança de equipes jurídicas de alta performance. Com experiência reconhecida no setor. Autor de diversas publicações em revistas jurídicas renomadas e responsável por casos de destaque na mídia, João Vitor Rossi está à frente de seu escritório, comprometido com a entrega de soluções inovadoras e eficazes para os seus clientes.
Taiana de Souza Aranha: Graduada em Gestão de Pessoas pela Faculdade Católica de Marília, com sólida experiência em rotinas administrativas e atendimento ao cliente, capacitada em departamentos pessoal e fiscal, e com formação complementar em técnicas de liderança e matemática financeira. Atua com foco em promover inclusão e eficiência organizacional.